Joedson Marcos Silva
Professor de Filosofia
Nos Estados Unidos, dois meios-irmãos,
negros e com deficiência mental grave, foram condenados pelo estupro e morte de
uma menina de 11 anos. Segundo os
advogados de Brown e McCollum, o Departamento de Polícia forjou testemunhos e escondeu evidências que
inocentariam os acusados, na época do julgamento. Depois de um longo interrogatório, sem advogado e sob
intensa pressão, McCollum assumiu a culpa de um crime que não cometeu. “Acabei
inventando uma história para me deixarem voltar para casa”, teria dito a um
jornal.
Assim, com base em falsos testemunhos, no relato de alguém com idade mental
equivalente a 9 anos e submetido a forte pressão psicológica, uma primeira
versão sobre os fatos foi apresentada, resultando na perda de liberdade de dois
deficientes, por três décadas.
Agora, uma segunda versão do episódio veio à tona. Uma
comissão designada para reexaminar o caso revelou que nenhuma das provas
colhidas na cena do crime continha o DNA dos acusados. Depois de os inocentes passarem 30 anos na cadeia, os testes comprovaram que outro homem foi o responsável
pelo crime, em 1983. Henry McCollum, de 50 anos, e Leon Brown, de 46, foram, então, inocentados do
crime de estupro seguido de morte.
Não é preciso muita imaginação para conceber uma terceira ou
uma quarta versão possível para o mesmo evento. Poderíamos, por exemplo,
cogitar que alguém se aproveitou do que se passou para difundir que quem
cometeu o crime foi um desafeto seu, ou que um interessado no caso, com
convicções diferentes das dos cientistas, consultou um parapsicólogo forense e
este apontou apenas um dos acusados como sendo o criminoso.
Para a sorte dos irmãos injustamente presos, um juiz do
estado da Carolina do Norte determinou a libertação imediata deles. Ele levou
em consideração que o segundo relato era o verdadeiro. É razoável pensar que,
mesmo se as duas outras versões que criamos estivessem à disposição da justiça
americana, isso não teria alterado a decisão do magistrado. Afinal, os
testes de DNA são reconhecidamente o método científico mais seguro para a
identificação de pessoas. Eles
são como uma impressão
digital genética, com
grau de confiabilidade que ultrapassa 99,9% de certeza em seu resultado.
Entretanto, algumas tendências
intelectuais contemporâneas têm adotado uma atitude de hostilidade em relação
às ciências, militando contra os conceitos de "realidade" e de
"fato", justamente aquilo que muitos cientistas se empenham em
conhecer. Como consequência, a versão científica sobre o mundo passou a ser
apresentada - para os adeptos dessas tendências intelectuais - como
mera "construção intelectual", adotada a partir da modernidade, e o
relato científico como mais um “discurso” ou “narrativa” entre tantos.
Caso
a perspectiva acima seja verdadeira, não poderíamos consistentemente discordar
do juiz se sua decisão fosse outra, embora, arrisco dizer, a maioria de nós intuiria
que uma tal atitude seria absurda. Se entendo corretamente os críticos da busca
objetiva de compreender a realidade, eles estão questionando essa nossa intuição.
Mas, será mesmo que não há qualquer
padrão de racionalidade imparcial capaz de avaliar diferentes versões sobre
como as coisas se passam no mundo? E se todas as alegações são mesmo meras
"narrativas" igualmente legítimas e equivalentes, não seria uma
consequência desse fato que a escolha do juiz, nesse caso, teria de ser
considerada arbitrária?
Respostas
interessantes para essas duas questões podem vir de uma perspectiva menos
pessimista em relação à capacidade de entendermos os eventos a nossa volta.
Embora menos popular, ela está mais próxima do senso comum e talvez por não
recusar o que este acolhe de bom grado, não pareça muito atraente a quem quer
se distinguir por uma maior erudição.
Essa alternativa não descrê da capacidade científica de fornecer algum
conhecimento objetivo sobre a realidade, nem coloca em causa certas
concepções da tradição intelectual ocidental. O que não significa, contudo, uma
atitude de desprezo para com outras tentativas de compreensão do universo, como
as religiões e o conhecimento popular. A relação entre a ciência e o saber comum
não é de total descontinuidade e é possível encontrar convergências entre
certas posições religiosas e teorias éticas sofisticadas.
Não se trata, por
conseguinte, de apenas inverter os sinais, passando a exibir uma admiração fanática
pela ciência e a atacar qualquer forma de espiritualidade. Isso seria repetir
exatamente o que há de pior no fanatismo religioso, e nada justifica a
intolerância em relação às pessoas que possuem convicções diferentes das
nossas.
O espírito
democrático e o respeito às diferenças passam pelo reconhecimento do pluralismo
de ideias e pela admissão de que
vivemos numa comunidade com uma diversidade de religiões, ideologias e orientações
políticas.
Além disso, não devemos buscar nas ciências respostas para questões que estão além do seu domínio, nem negar o valor de outras atividades humanas. Há muitas visões de mundo diferentes da ocidental e, por meio delas, nossas próprias posições podem ser iluminadas. Por isso, é interessante conhecê-las, assim como conhecer a história das religiões e das culturas.
Mas não devemos,
por isso, deixar de criticar o que parece estar errado. Desde que nos
concentremos nas ideias e o debate não ultrapasse a fronteira da racionalidade,
sendo feito de modo educado, a postura crítica é aceitável. Essa é a forma de se evitar que os
seguidores de uma religião ou ideologia, mesmo em maior número, imponham as
suas convicções aos restantes dos indivíduos.
Dessa forma, precisamos encarar seriamente crenças erradas
que, na prática, podem ter um enorme impacto sobre o que
acontece às pessoas, fazendo com que passem por sofrimentos desnecessários.
Pense no caso de quem acredita ser um bom
remédio para curar uma doença algo que acaba agravando-a ou numa desinformação
científica que possa estar na base de preconceitos racistas, sexistas ou alguma
forma de fundamentalismo religioso.
Nesses casos, assim como é verdade
que devemos valorizar os aspectos interessantes de abordagens não científicas, temos
de reconhecer os valores apreciáveis da ciência, como a admissão de que não é
infalível e seu esforço constante para se autocorrigir. Valores esses que
permitiram rejeitar a análise da aparência física dos réus em processos judiciais e adotar a
coleta de DNA como forma de identificação criminal.
3 comentários:
O professor Joedson escreve sobre assuntos complexos de uma forma que nos faz refletir e compreender certos aspectos das atitudes humanas antes restritas à academia.
Parabéns!
Valeu, Guto! Obrigado pelas palavras de incentivo.
Interessante a argumentação das ideias a partir dos exemplos reais, a ciência tem um papel relevante nesta sociedade. Apesar da relação necessária do espirito democrático e respeito a tolerância às diferenças, vivemos tempos cada vez mais arbitrários.
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