A mídia brasileira,
supostamente um “PiG” segundo tantos governistas, parece abandonar qualquer
veleidade golpista quando se trata de greve de trabalhadores. No caso da atual
greve dos professores federais (do Magistério Superior e do Magistério
Básico, Técnico e Tecnológico) e dos servidores técnico-administrativos, a imprensa
tem funcionado basicamente como uma caixa de ressonância do governo, repetindo
de forma descontextualizada números que se desmancham quando colocados em
contexto, de forma a criar a impressão de professores marajás que se recusam a
aceitar generosas ofertas do Executivo. Vamos ver se essas matérias resistem à
análise.
Na rotina de repetir
informações oficiais, a imprensa foi preguiçosa, na melhor das hipóteses ou,
como o governo, desonesta com os números. Governo
concede reajuste de 25% a 45%, afirmou o Estadão. Governo
propõe reajuste de até 47,7%, manchetou o Globo. Em primeiro lugar, salta
aos olhos a discrepância entre os números dos dois jornais. É 45%, como diz o
Estadão, ou é 47,7%, como diz o Globo? Não pode ser as duas coisas. Na verdade,
não é nenhuma das duas, e não o é por um motivo muito simples, tão simples que
chega a ser difícil acreditar que foi mera preguiça dos dois jornais. No mundo
realmente existente, os preços sobem – existe aquela coisinha chamada inflação.
Vejamos o que acontece com os números do governo quando ela é computada.
A remuneração recebida pelos
professores até fevereiro foi tomada como referência pelo governo e os valores
foram fixados em julho de 2010. Ou seja, há que se computar a perda do poder
aquisitivo desde julho de 2010. Mas a brincadeira não termina aí. Os índices
propangadeados pelo governo não são de um aumento imediato e automático. A
tabela só seria completada em março de 2015.
É só fazer as contas. Vamos
lá?
A partir do IVC medido pelo
DIEESE, a desvalorização salarial entre julho de 2010 e junho de 2012, mais a
projetada até março de 2015, é de 35,55%. De uma tacada, desaparece um enorme
naco do que seria o “reajuste” proposto pelo governo. Lembre-se de que todo o
noticiário sobre a proposta apresentada aos docentes brandia esses números (45%
ou 47%) como se esses fossem os reajustes – sem informar que se tratava de
valores fixados em julho de 2010 e sem mencionar que eles não seriam
implementados na íntegra até março de 2015.
Computando a corrosão
inflacionária, então, sobrariam 10% (segundo a mentira publicada no Estadão) ou
12% (segundo a mentira publicada no Globo) de reajuste para os docentes,
correto? Errado de novo. Esse número apresentado depois da partícula “até” —
“Governo oferece reajuste de até 45%” – na verdade se aplica somente aos
Profesores Titulares, que representam não mais que 10% do quadro docente das
federais brasileiras. Mais importante ainda, e desconhecido por quem não está
familiarizado com o sistema universitário federal brasileiro, é o fato de que
os Professores Titulares atualmente não estão inseridos no plano de carreira
dos demais professores.
Um Professor Adjunto 4 (nível
imediatamente anterior) que queira aceder à posição de Titular deverá prestar
outro concurso e, em muitos casos, perder benefícios previdenciários que já
possuía. No caso da maioria dos professores, a proposta do governo representa,
na verdade, uma perda salarial.
A greve dos professores foi
iniciada no dia 17 de maio, com 14 universidades. Nas duas semanas seguintes,
já eram mais de 40 instituições paralizadas, e logo em seguida a greve passou a
incluir quase a totalidade dos professores federais. Praticamente dois meses
inteiros transcorreram até que, no dia 13 de julho, o governo aceitou se sentar
à mesa de negociação. Repitamos: a mesma Dilma Rousseff que se cansou de falar
em “valorizar o magistério” e “priorizar o diálogo” durante a campanha
eleitoral deixou que uma greve do mui mal pago professorado federal
transcorresse durante 57 dias sem tomar conhecimento, oferecer qualquer
proposta ou sequer reconhecer que havia um movimento reivindicatório.
Quando o governo finalmente
dirigiu a palavra aos professores, 56 das 59 universidades estavam em
greve. Junto com a mentirosa porcentagem dos “45%”, brandiu-se na mídia o
valor de R$ 17,1 mil, que é o oferecido pelo governo para Professores
Titulares, em fim de carreira, a ser recebido em 2015 – uma anomalia que afeta
uma ínfima parcela dos professores universitários brasileiros, que recebem
salários que estão longe da metade disso. Eu cheguei a ser interpelado por uma
pessoa que estava convicta de que os professores federais brasileiros “haviam
recusado oferta de 17 mangos por mês”.
Tal como está estruturada
hoje, a carreira do docente universitário se divide em: Professor Auxiliar (que
possui graduação, progride de níveis 1 a 4 e que hoje entra ganhando 2.872,85
reais), Professor Assistente (que possui mestrado, também progride de níveis 1 a 4 e hoje começa com
3.181,04 reais – sim, isso, um professor universitário com mestrado no sistema
federal brasileiro recebe hoje menos
da metade de um técnico de nível médio do TCU), Professor Adjunto (que tem
doutorado, também avança de 1 a
4 e inicia, hoje, na faixa dos 3.553,46 reais de vencimento básico [VB],
acrescidos de uma retribuição por titulação [RT] que eleva o bruto a 7.627,00)
e Professor Associado (também doutor, também escalonado em quatro níveis, e com
VB iniciando em 4.043,87, chegando até 11.131,69 quando computamos o RT). No
caso de que abra uma vaga na instituição, quem tem tempo, energia e disposição
para se preparar para outro concurso terá a chance de aceder ao cargo de
Professor Titular.
Todos os números fornecidos
acima se referem aos professores que trabalham em regime de dedicação
exclusiva. Para os que trabalham em regime de 40 ou 20 horas, a remuneração é
substancialmente inferior, claro. Aliás, os professores são, provavelmente, os
únicos servidores federais para quem a remuneração em regime de 40 horas não é
o dobro daquela paga aos que trabalham em regime de 20 horas. Um Doutor,
entrando como Professor Adjunto, em regime de 20 horas, recebe hoje 2.619 reais
no sistema federal brasileiro, já incluída a remuneração por titulação.
Trabalhando em regime de 40 horas, esse mesmo Professor Adjunto, com doutorado,
recebe hoje 4.472 reais, só 2.618,61 dos quais são realmente salário.
O resto é bonificação por
titulação que não entra, por exemplo, no cálculo dos benifícios
previdenciários. Os números podem ser conferidos a partir da página 170 deste
documento.
3. Reivindicações
Os professores reivindicam um
plano de cargos e salários que unifique a profissão de professor federal e que
trate os docentes com isonomia, dentro de uma sequência coerente. Várias das
propostas apresentadas pelo movimento foram apropriadas pelo governo e
desvirtuadas dentro de um regime no qual elas perdem o seu sentido.
Por exemplo, a proposta de
redução dos 17 níveis da carreira atual para 13 foi aceita pelo governo, mas …
tchan tchan tchan … aumentando de 18 para 24 meses o prazo mínimo para que se
ascenda de um nível a outro! Basta você multiplicar 17 x 18 e depois
multilplicar 13 x 24 para perceber que o governo simplesmente tirou sarro da
cara dos grevistas.
Pior ainda, a progressão de
nível passa a ser sujeita a “avaliação de desempenho de acordo com
diretrizes estabelecidas pelo MEC”, diretrizes que ninguém sabe quais são.
Mais grave ainda, a primeira
proposta apresentada pelo governo incluía o aumento da carga
horária mínima obrigatória, de oito para doze horas-aula semanais,
incrementando em 50% o tempo de sala de aula e reduzindo ainda mais as condições
de pesquisa e produção acadêmica segundo as quais os docentes são avaliados.
Num magnífico texto publicado no Passa
Palavra, o Prof. João Alberto da Costa Pinto, da Universidade Federal de
Goiás, detalhou o caráter essencialmente tecnocrático da proposta do governo,
que impõe, especialmente às ciências humanas, um modelo de avaliação próprio
das ciências exatas, consoante com a famosa frase da Presidenta, de que “o
Brasil não precisa de mais sociólogos, precisa é de engenheiros”. Para uma
avaliação minuciosa do escárnio que foi a proposta do governo, pode-se
consultar este
documento da ANDES.
Apesar de que nenhuma das
reivindicações dos docentes foi atendida pelo governo, uma entidade que não
representa mais que oito instituições, e formada por forças governistas com
pouquíssima representatividade dentro da categoria, o Proifes, assinou um
“acordo” com o Executivo prevendo o fim da greve. Esqueceram-se, como diria
Garrincha, de combinar com os russos. Mesmo algumas das universidades cujo
sindicato é controlado pelos pelegos do Proifes — UFBA, UFG, UFC e UFPel —
decidiram pela continuação da greve. A rigor, só a Federal de São Carlos
decidiu pela volta às aulas.
Outro belo texto do Prof.
João Alberto da Costa Pinto relata como a luta dos professores vai atropelando,
de forma surpreendente para muitos, os pelegos do Proifes. Para entender
como se construiu um sindicato pelego para tentar solapar a ANDES e a luta dos
professores, este
texto do Acerto de Contasé leitura obrigatória.
Apesar de tudo, a máquina de
mentiras do governismo continuou operando a toda nas redes sociais: um de seus
pseudônimos no Twitter chegou a afirmar que havia professores brasileiros no
exterior “fazendo as malas” para voltar. Só se for os professores brasileiros
residentes no Zimbábue, porque o que é oferecido a um
ProfessorDoutor (lembre-se: graduação + mestrado + doutorado: no mínimo
década e meia de estudo e produção acadêmica contínua) como salário-base
inicial para um regime de 40 horas ainda é menos que Tulane University, uma
universidade que reconhecidamente paga mal, oferece como bolsa a
um estudante de mestrado – isso em New Orleans, cidade que
tem hoje um custo de vida inferior aos do Rio de Janeiro ou de Belo Horizonte,
para ficarmos nas sedes das duas mais ilustres universidades federais
brasileiras.
Ainda assim, a greve dos
professores vem sendo atacada como “corporativista”, o que é francamente
ridículo em se tratando de uma categoria tão importante, estratégica e mal
paga. Como diria o nosso querido TecloLogoExisto, querem que os
professores façam greve por quê? Pela paz e harmonia universal entre os povos?
Lembremos ainda que a greve
inclui também os Professores e Técnicos-Administrativos dos Institutos
Federais, aos quais o governo ainda não fez nenhuma proposta, o que
inviabiliza, claro, que o seu sindicato, o SINASEFE, sequer cogite abandonar a
greve.
Tudo isso, claro, porque
elegemos um governo que prometeu “valorizar o magistério”.
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