Greve de professor é mesmo
greve? A quem se dispuser a refletir sobre a questão, é aconselhável pesquisar
o pragmatismo americano, que atribui grande importância à terminologia como
vetor de consolidação ou de mudança ideológica na vida social. Veja-se greve: no contexto semântico do
neoliberalismo e na mentalidade seduzida pelo “capitalismo cognitivo”,
registra-se uma tendência nada sutil para expurgar da História contemporânea
essa palavra.
Primeiro, argumenta-se que,
para determinadas atividades, como a educação, não “existe” greve porque a
interrupção do trabalho não prejudicaria realmente o empregador. Segundo, no
caso do operariado, a greve prejudica a produção, sim, mas seria um instrumento
típico do regime fordista de trabalho, logo, anacrônico.
A falácia desse tipo
de argumentação está em supor a universalidade de categorias hipermodernas,
como o “capital humano” (a criação de valor não pela força de trabalho externa
ao trabalhador, e sim pelo seu saber vivo, dito “imaterial”), fruto do
capitalismo cognitivo, supostamente emergente e virtuoso em todos os rincões do
planeta.
Nada disso é falso, mas
tudo isso, colocado apenas dessa maneira, esconde alguns fatos importantes. Por
exemplo, o capital dito humano mantém a sociedade dependente da “velha” produção
material e, não raro, em regimes historicamente regressivos. Outro: a
flexibilidade do contrato de trabalho, um dos aspectos emergentes desse
processo, contribui para que empresa e produção de riquezas deixem de ser
mediadas pelas formas clássicas de trabalho.
A greve é um mecanismo
clássico de luta operária, porém, o seu sentido vem sendo reposto na História
pelos movimentos sociais em prol não apenas dos direitos trabalhistas, mas
também dos direitos civis e dos direitos sociais (educação, saúde). A própria
legislação (Consolidação das Leis do Trabalho) reconhece que a palavra greve
refere-se, por extensão, à interrupção coletiva e voluntária de qualquer
atividade, remunerada ou não, para protestar contra algo. Nada impede que se
faça greve até mesmo pelo direito de trabalhar, quando essa atividade estiver
ameaçada em sua dignidade ou na possibilidade de sua continuação.
A greve atual dos professores
das universidades federais, com quase três meses de duração, insere-se nesse
quadro amplo, de muitos aspectos. Comecemos pelo aspecto macroeconômico. Um
estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que um dos fatores para a atual
ascensão da baixa classe média foi a universalização do ensino fundamental a
partir dos anos 1990. Estima-se que a continuidade da mobilidade social
dependerá do cumprimento das metas de educação.
O problema é que a
educação comparece no discurso oficial como uma reles peça orçamentária,
mensurável apenas por estatísticas de matrículas, avaliações e recursos.
Deixa-se de lado o essencial em todo e qualquer processo educacional, ou seja,
o professor e seus históricos fronts republicanos – cultura,
pedagogia e democracia. Sem a formulação de projetos político-pedagógicos em
níveis nacionais, vê-se prosperar uma subcultura avaliativa, decorrência lógica
da presença de tecnoburocratas, em vez de pedagogos e pensadores, na esfera
clássica da educação.
É essa subcultura, aliás, que
alimenta as organizações internacionais (OCDE, Banco Mundial, Comissão
Europeia) empenhadas na constituição de um mercado mundial da educação. Ainda
assim, o discurso globalista consegue estar à frente da parolagem
governamental, onde a palavra educação circula como um fetiche economicista.
Mesmo apoiado no limitado escopo empresarial do capital humano, o discurso
globalista não abre mão da valorização do professor.
A valorização republicana do
professor dá-se pelo reconhecimento público de sua estabilidade institucional
no quadro do Estado. Este é o ponto central do movimento grevista em curso: um
novo plano de carreira e um salário sem os “penduricalhos” instáveis, obtidos
ao longo de anos de lutas. O reajuste salarial está atrelado a esse plano,
sintomaticamente rejeitado pelo atual governo: “A reestruturação das carreiras
já ocorreu no governo Lula e agora mudou a política, numa situação agravada
pela crise”.
Mas que mudança política? Que
crise? Que agravamento? Estas palavras não aparecem nos discursos oficiais
sobre os preparativos para a Copa do Mundo ou para as Olimpíadas. Num país que
dispõe (neste mês de agosto) de 376 bilhões de dólares em reservas, paga em dia
a dívida externa e é credor do Fundo Monetário Internacional, não se podem
invocar os álibis da crise mundial e seu agravamento, mesmo com a redução do
PIB.
Não se trata realmente de
falta de fundos, mas de falta do bom-senso necessário a uma mudança de
mentalidade em favor da ampliação das políticas sociais, com vistas à
transformação da educação e da saúde públicas. O cuidado é outro, como
reverbera o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho:
“Temos de nos preocupar muito com o emprego daqueles que não têm estabilidade.
Então, toda a nossa sobra fiscal estamos procurando empregar para estimular a
indústria, a agricultura, o comércio e os serviços, porque esses nos preocupam
mais”.
Em outras palavras, a
iniciativa privada gera riqueza, logo, paga impostos que arcam com o custo das
políticas sociais. Isto é o que a retórica chama de “paralogismo da indução
defeituosa”, e nós chamamos de pérola da simplificação neoliberal.
Defeito: o porta-voz deixa de
dizer que, quando uma empresa qualquer contrata um profissional qualificado,
está incorporando um “ativo” que custou anos de “ativos” familiares ou estatais
para a sua formação. Onde o neoliberal diz “custo” leia-se “investimento em
infraestrutura”. A terminologia proativa explica: “É a educação, Carvalho!”
“Mas temos todo o
respeito pelos servidores”, ressalvou o ministro. Por que então não dialogar
com todos os seus órgãos de classe?
Respeitar é não discriminar.
O plano de carreira, por exemplo, é matéria controvertida entre os próprios
professores: tem laivos corporativistas, passa ao largo do problema da
padronização salarial que impede a contratação de cérebros estrangeiros. Greve
é hoje demanda de diálogo público. Mas no vazio da representatividade inexiste
diálogo, já que voz nenhuma se reproduz no vácuo.
Por tudo isso, no momento em
que o fantasma do neoliberal Milton Friedman reaparece nos jornais, é
admissível pensar que esta greve dos professores universitários tem algo de
pedagógico numa sociedade de fraca participação coletiva, mobilizada apenas
pela novela das 8: uma aula pública de indignação diante da hipocrisia oficial
para com a educação e um apelo à mobilização da sociedade como um todo.
* Professor emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e escritor.
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