Escrito por: Mariana Mazza
Fonte: Band Notícias UOl
Hoje foi dia de comissão geral na Câmara dos Deputados para debater o Marco Civil da Internet. 28 convidados apresentaram suas visões do projeto, sem contar uma dezena de líderes que também comentaram os pontos fortes e fracos da proposta relatada pelo deputado Alessandro Molon (PT/RJ). Foram mais de cinco horas de apresentações. E, apesar de o evento ter sido sugerido pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) - o líder do dissenso neste tema - , a comissão geral revelou um cenário bastante positivo para quem defende a neutralidade de redes, considerado o ponto mais polêmico da proposta.
A primeira coisa que ficou claríssima: apenas um único segmento é contrário ao princípio da neutralidade de redes como está posto no texto. Adivinhem qual? As empresas de telefonia. É claro que as teles alegam que, na verdade, são favoráveis a este princípio. Na visão das teles é o resto do mundo que não entende o que ele significa. Nesta esteira, divulgam uma versão do que seria neutralidade onde elas podem cobrar preços diferenciados para que o consumidor possa ter acesso a conteúdos específicos sem ferir o tratamento neutro na rede. Lamento informar mas isso não é neutralidade.
Como vários palestrantes explicaram de forma simples e precisa, para que a neutralidade seja respeitada todas as informações devem ser trafegadas na rede de forma equânime. E bloquear quem não tem dinheiro para comprar "pacotes especiais” com acesso a conteúdos específicos é uma forma de descumprir esse princípio. Uma coisa é a venda de pacotes com velocidade diferenciada – quem pode pagar, tem uma velocidade melhor. Outra bem diferente é seccionar a Internet pelo conteúdo de interesse, comercializando planos para acesso de e-mails, vídeos, redes sociais e outras aplicações. Caso essa visão errônea prevaleça, teremos uma sociedade de castas na Internet. "Nós criaremos uma sociedade onde só os ricos tem acesso ao conhecimento. Os pobre não", resumiu o deputado Domingos Sávio (PSDB/MG).
Mas o fato de as teles estarem isoladas nesta briga não diminui o poder e a influência que este grupo parece exercer sobre o Poder Legislativo. Eduardo Cunha, líder do PMDB na Câmara, já anunciou que defenderá com unhas e dentes uma mudança no conceito de neutralidade quando o projeto for à votação, provavelmente na próxima semana. Um detalhe: Cunha não tem falado apenas em seu nome, mas pelo "partido", indicando que trabalhará para que o PMDB, segunda maior bancada na Câmara, vote contra o texto alinhavado por Molon.
No momento mais tenso da comissão geral, o representante do Coletivo Intervozes, Pedro Ekman, lembrou os parlamentares de que estamos às vésperas de um ano eleitoral e que eventuais posições contrárias aos interesses da sociedade serão "lembradas nas urnas”. Cunha não gostou. Foi à tribuna, indignado, e rechaçou o que considerou uma ameaça à livre opinião dos parlamentares. Cunha chegou a mencionar que, não fosse sua sugestão para a convocação da comissão geral, Ekman sequer estaria ali para emitir sua opinião. Não compreendo porque a lembrança de que os eleitores poderão considerar o Marco Civil na hora de decidir seus votos em 2014 é entendida como uma ameaça e um desrespeito. Cada vez mais temos uma sociedade consciente do poder da Internet como ferramenta de livre manifestação do pensamento e de informação. As manifestações de junho, em boa parte mobilizadas pelas redes sociais, mostram essa realidade. Relembrar aos parlamentares de que os eleitores devem considerar a posição dos políticos na hora de decidir se irão reelege-los não é crime algum. É um simples lembrete de como a democracia funciona.
Cunha afirmou que as entidades civis representam apenas "uma parte da sociedade". É verdade. Existem organizações econômicas que também compõem esse organismo chamado "sociedade" e sem dúvida é legítima a defesa de seus interesses. Mas não é possível colocar na mesma esfera de representatividade uma entidade civil, que fala em nome de milhões de cidadãos, e uma entidade patronal, por exemplo, que representa os interesses de um grupo extremamente pequeno de empresas. As companhias telefônicas continuam tendo todo o direito de brigar por um modelo que lhes beneficie. Mas o que se espera do Poder Legislativo é que ele tome decisões que beneficiem a maioria e não pequenos grupos. Desqualificar a crítica de um representante da sociedade não me parece um bom caminho para um parlamentar.
Vendo a briga travada hoje lembrei-me do famoso memorando produzido pelo Citigroup em 2006 defendendo a consolidação da "plutonomia", a economia dos ricos. No documento, o Citigroup – esse velho conhecido do setor de telecomunicações brasileiro – explica como o modelo funciona. "Em uma plutonomia não existe tal animal como ´o consumidor dos EUA´ ou ´o consumidor do Reino Unido´, ou mesmo o ´consumidor russo´. Há consumidores ricos, poucos em número, mas desproporcionais na gigantesca fatia de renda e consumo que eles tomam. E há o resto, os ´não-ricos´, em multidões, mas que curiosamente só ficam com pequena fatias do bolo nacional". O memorando comemora como esse sistema tem funcionado com sucesso pelo mundo todo. Lamenta apenas a demora na consolidação de uma segunda etapa para um mundo plenamente gerido pelos ricos e em favor dos ricos, batizada de "plutocracia", que seria o governo dos ricos. Na visão do Citi, infelizmente o voto dos pobres ainda tem o mesmo peso do voto dos ricos. E essa equivalência é terrível para os mais abastados, já que eles representam apenas 1% da população mundial.
A ponderação feita por Ekman nada mais faz do que frisar este aspecto. Se o Congresso Nacional aprovar um Marco Civil que privilegie os ricos em detrimento dos pobres, os prejudicados podem revidar pelo simples fato de serem maioria nas urnas. É bem verdade que o apoio de grandes empresas é decisivo nas campanhas eleitorais. E o tamanho dessas campanhas pode ser a diferença entre ganhar ou perder nas urnas, especialmente em um cenário de desinformação dos eleitores. Mas, em um debate sobre Internet, essa ferramenta tão rica no processo de informação do cidadão, é um erro estratégico menosprezar o impacto sobre os eleitores de uma eventual medida que cerceie a liberdade de uso da rede.
Apesar de mais uma vez ficar claro que a grande polêmica em torno do Marco Civil resume-se ao esperneio das empresas de telecomunicações, que querem faturar cada vez mais com a Internet, ainda assim esse atrito pode jogar por terra todo o trabalho para construir essa carta de princípios. Sem contar que outras questões perigosas surgiram nos últimos dias envolvendo as mudanças solicitadas pela presidente Dilma Rousseff, especialmente nos itens sobre a guarda de dados no Brasil. A luta agora é para garantir ao menos um texto-base que preserve o coração do Marco Civil: a neutralidade de redes, sem brechas para que as empresas manipulem comercialmente o cumprimento dessa regra. Se considerarmos os discursos feitos hoje pelos parlamentes, a grande maioria da Câmara parece concordar com os pilares do Marco Civil. Resta saber se, na hora da votação, os nossos deputados manterão a coerência.
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