segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A VIRTUDE E A PERVERSÃO DE DOROTEIA

 Francisco Gonçalves *

No filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis (2002), Kika, personagem interpretado por Dira Paes, é uma cristã fervorosa que, na trama, representa o pudor, descrito por outro personagem como a “forma mais inteligente de perversão.

Embora com perfis diferentes, pudor e perversão também compõem o personagem de Laura Cardoso, da novela Gabriela. Na versão global da história de Jorge Amado, Doroteia é uma senhora dominadora, pilar da moral e protetora dos bons costumes de Ilhéus.

Doroteia seria a antítese de Maria Machadão, a dona do Bataclã. Interpretado por Ivete Sangalo, Machadão comanda com mão firme o principal local de encontros políticos e diversões sexuais da elite de Ilhéus, dos probos pais de família da cidade baiana.

As duas, no entanto, têm mais em comum do que poderiam imaginar as beatas da cidade. Elas são as principais responsáveis pela ordem sexual de Ilhéus, embora a primeira se reivindique a única virtuosa das duas e, por isso mesmo, digna de julgar, aconselhar e punir.

Doroteia fez da fidelidade ao casamento e ao marido a sua virtude e critério de julgamento. Viúva e mãe do ex-jagunço e coronel Amâncio Leal, transformou as suas frustrações e crenças em permanente vigília moral – quer saber de tudo e aconselhar a todos.

Poderosa, Doroteia exige das mulheres a mesma fidelidade aos maridos. Para ela, cada uma deveria cumprir o papel que lhe foi designado no casamento, definido pelo coronel Jesuíno em uma ordem a Sinhazinha: “se prepare, pois hoje vou lhe usar”.

Contra esse destino, Sinhazinha buscou uma saída no amor de Osmundo. Avisado por Doroteia que, de antemão, previa o desenlace da história, Jesuíno mata os dois para lavar a sua honra de marido traído e, deste modo, afirmar a sua macheza diante dos outros machos.

Na sociedade dos coronéis, vale o uso da força para conquistar a terra, ampliar a plantação de cacau e preservar a honra do casamento. Nessa sociedade, mulher dama e mulher de família, a mulher de sociedade, não se misturam, pois uma é santa e a outra é puta.

É a partir dessa divisão de papéis sexuais que Doroteia se arvora o direito de punir qualquer uma que procure o que ela não teve coragem de buscar em sua própria vida e, deste modo, assegurar que a ordem moral/sexual da cidade seja observada e respeitada.

Uma da casa de família e outra do cabaré, as duas se completam: enquanto Machadão  oferece as quengas para o deleite sexual dos senhores de Ilhéus, Doroteia zela para que as senhoras de família continuem fielmente disponíveis para a reprodução da espécie.

Para além dos folhetins, é essa mesma ordem, típica das sociedades patriarcais, das sociedades dos coronéis, que costuma ser invocada, sob os mais diversos nomes e mantos, para regular, julgar e punir quem não se enquadra na ordem moral dominante.

Zelosas, as doroteias continuam vigilantes, atentas para quem se insurge contra essa ordem, a exemplo das vadias, gays, feministas e defensores dos direitos humanos. Para essas pessoas, a democracia deve ser simplesmente imoral, com todas as suas liberdades de expressão.

* Francisco Gonçalves é professor do Curso de Comunicação Social da UFMA

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