sábado, 30 de março de 2013

DIVAGAÇÕES SOBRE OS JUMENTOS TRISTES


Entre tantas cenas das cidades, chama atenção a tristeza dos jumentos, burros e cavalos nas beiras das estradas ou atravessando as avenidas, cabisbaixos, sorumbáticos, deprimidos, traduzindo a pior das sensações – o abandono.

Eles foram trocados por motocicletas e a zona rural agora só se movimenta a duas rodas.

Seria sadismo de minha parte dizer que os jumentos são masoquistas. Porém, a tristeza deles parece transmitir a saudade do dono e, lá no fundo, sentem falta do açoite e do capim.


Quando o homem dominou os animais e passou a usá-los como instrumento de trabalho, deu-se um salto fantástico na sociabilidade. Tão significativo quando o domínio do fogo.

Os cavalos de guerra e os jumentos tropeiros tiveram papel fundamental nas conquistas e no desenvolvimento econômico. A agricultura movida a tração animal fez evoluir a produtividade.

O transporte de cargas, nos lombos dos cavalos, burros e jumentos, ampliou o comércio, abriu rotas e dinamizou as trocas de mercadorias.

O que seria do ciclo do ouro, no Brasil, sem as marchas das mulas carregando tesouros pela Estrada Real, entre Minas Gerais e Parati (RJ), em verdadeiras operações de guerra?


Na “Apologia ao jumento”, Luiz Gonzaga canta assim:

“Arrastou lenha...
Madeira...pedra, cal, cimento , tijolo...telha
Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem...fez a feira e serviu de montaria
O jumento é nosso irmão..”

Os animais de tração e carga foram também fundamentais na plantação da cana-de-açúcar e no fabrico da cachaça, “especiaria” trocada por escravos no tempo cruel do comércio de pessoas.


Nas guerras, antes dos motores e das bombas, os cavalos foram abrindo os caminhos que posteriormente desenhariam as estradas entre as cidades, mapeando os territórios conquistados.

Era a geopolítica traçada a patadas pelos quadrúpedes.

Bem antes disso, Jesus Cristo entrava triunfal em Jerusalém, montado em um jumento, durante a celebração da Páscoa.

No livro “A revolução dos bichos”, George Orwell lança mão da personagem Sansão, um cavalo forte, obediente, trabalhador, exemplo da representação do proletariado fiel, mas o primeiro a ser sacrificado quando os porcos assumiram o poder na fazenda outrora dominada pelo homem opressor.


Escrevendo com a faca enfiada no ventre do socialismo, Orwell ilustra no cavalo Sansão a crítica aos equívocos comunistas no Leste Europeu, onde as burocracias partidárias transformaram-se em castas elitizadas.

Mas é na Filosofia que o cavalo ganha os melhores requintes cognitivos. Contam os biógrafos, mas há quem tenha o episódio como lenda, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche saíra de um hotel em Turim, deparando com a cena que aprofundaria sua loucura.

Um cocheiro impaciente com o cavalo emperrado passara a chicotear impiedosamente o animal, chamando a atenção das pessoas ao redor da cena. Nietzsche interrompeu a sessão de espancamento e, aos prantos, abraçou-se ao pescoço do cavalo maltratado.

Após esse episódio o filósofo entrou em profunda clausura, silêncio e enlouquecimento, até falecer, em agosto de 1900.

Mudo e demente, o pensador do eterno retorno, da transmutação de todos os valores, dos ditirambos dionisíacos, da filosofia a marteladas, aquele que decretou a morte de Deus e instituiu o super-homem, o arauto do crepúsculo dos ídolos, o filósofo além do bem e do mal, o autor de “Anticristo”; enfim, o poderoso Nietzsche estava tomado por um dos sentimentos que ele mais repulsava – a compaixão.

Eis o homem!

Abraçado ao pescoço do cavalo, o filósofo chorava a dor do animal. Estaria ele humano demasiado humano?

Quando vejo os jumentos soltos nos acostamentos, com os olhos tristes, penso na dor do abandono. Tão cruel quanto o espancamento, a indiferença corta a carne e chicoteia a alma.


Depois de abraçar o cavalo, aos prantos, Nietzsche nunca mais voltou ao convívio social. Recolheu-se a si próprio, morrendo aos poucos na solidão dos seus pensamentos.

O olhar de Nietzsche enlouquecido, à imagem e semelhança do olhar dos jumentos tristes, traduz o abandono da razão, a desistência do humano, o desprezo do mundo e de si próprio, mergulhado no poço profundo e sem fim do niilismo.

Veja AQUI a montagem com as imagens de Nietzsche ao fim da vida.

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