Entre tantas cenas das
cidades, chama atenção a tristeza dos jumentos, burros e cavalos nas beiras das
estradas ou atravessando as avenidas, cabisbaixos, sorumbáticos, deprimidos,
traduzindo a pior das sensações – o abandono.
Eles foram trocados por
motocicletas e a zona rural agora só se movimenta a duas rodas.
Seria sadismo de minha parte
dizer que os jumentos são masoquistas. Porém, a tristeza deles parece
transmitir a saudade do dono e, lá no fundo, sentem falta do açoite e do capim.
Quando o homem dominou os animais e passou a usá-los como instrumento de trabalho, deu-se um salto fantástico na sociabilidade. Tão significativo quando o domínio do fogo.
Os cavalos de guerra e os
jumentos tropeiros tiveram papel fundamental nas conquistas e no
desenvolvimento econômico. A agricultura movida a tração animal fez evoluir a
produtividade.
O transporte de cargas, nos
lombos dos cavalos, burros e jumentos, ampliou o comércio, abriu rotas e dinamizou
as trocas de mercadorias.
O que seria do ciclo do ouro,
no Brasil, sem as marchas das mulas carregando tesouros pela Estrada Real,
entre Minas Gerais e Parati (RJ), em verdadeiras operações de guerra?
Na “Apologia ao jumento”,
Luiz Gonzaga canta assim:
“Arrastou lenha...
Madeira...pedra, cal, cimento
, tijolo...telha
Fez açude, estrada de
rodagem, carregou água pra casa do homem...fez a feira e serviu de montaria
O jumento é nosso irmão..”
Os animais de tração e carga
foram também fundamentais na plantação da cana-de-açúcar e no fabrico da
cachaça, “especiaria” trocada por escravos no tempo cruel do comércio de
pessoas.
Nas guerras, antes dos
motores e das bombas, os cavalos foram abrindo os caminhos que posteriormente
desenhariam as estradas entre as cidades, mapeando os territórios conquistados.
Era a geopolítica traçada a
patadas pelos quadrúpedes.
Bem antes disso, Jesus Cristo
entrava triunfal em Jerusalém, montado em um jumento, durante a celebração da
Páscoa.
No livro “A revolução dos
bichos”, George Orwell lança mão da personagem Sansão, um cavalo forte,
obediente, trabalhador, exemplo da representação do proletariado fiel, mas o
primeiro a ser sacrificado quando os porcos assumiram o poder na fazenda
outrora dominada pelo homem opressor.
Escrevendo com a faca enfiada
no ventre do socialismo, Orwell ilustra no cavalo Sansão a crítica aos
equívocos comunistas no Leste Europeu, onde as burocracias partidárias
transformaram-se em castas elitizadas.
Mas é na Filosofia que o
cavalo ganha os melhores requintes cognitivos. Contam os biógrafos, mas há quem
tenha o episódio como lenda, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche saíra de
um hotel em Turim, deparando com a cena que aprofundaria sua loucura.
Um cocheiro impaciente com o
cavalo emperrado passara a chicotear impiedosamente o animal, chamando a
atenção das pessoas ao redor da cena. Nietzsche interrompeu a sessão de
espancamento e, aos prantos, abraçou-se ao pescoço do cavalo maltratado.
Após esse episódio o filósofo
entrou em profunda clausura, silêncio e enlouquecimento, até falecer, em agosto
de 1900.
Mudo e demente, o pensador do
eterno retorno, da transmutação de todos os valores, dos ditirambos
dionisíacos, da filosofia a marteladas, aquele que decretou a morte de Deus e
instituiu o super-homem, o arauto do crepúsculo dos ídolos, o filósofo além do
bem e do mal, o autor de “Anticristo”; enfim, o poderoso Nietzsche estava
tomado por um dos sentimentos que ele mais repulsava – a compaixão.
Eis o homem!
Abraçado ao pescoço do
cavalo, o filósofo chorava a dor do animal. Estaria ele humano demasiado
humano?
Quando vejo os jumentos
soltos nos acostamentos, com os olhos tristes, penso na dor do abandono. Tão
cruel quanto o espancamento, a indiferença corta a carne e chicoteia a alma.
Depois de abraçar o cavalo,
aos prantos, Nietzsche nunca mais voltou ao convívio social. Recolheu-se a si
próprio, morrendo aos poucos na solidão dos seus pensamentos.
O olhar de Nietzsche
enlouquecido, à imagem e semelhança do olhar dos jumentos tristes, traduz o
abandono da razão, a desistência do humano, o desprezo do mundo e de si
próprio, mergulhado no poço profundo e sem fim do niilismo.
Veja AQUI a montagem com as imagens de Nietzsche ao fim da vida.
Um comentário:
Vou ali chorar... que tristesa...
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