Vladimir
Safatle *
A
verdadeira tarefa política é a reconstrução de nossos afetos. Inebriados por
discussões a respeito de sistemas de normas e instituições, demoramos muito
tempo para perceber que a política é, acima de tudo, uma questão de mobilização
de afetos. Discursos circulam e levam os corpos a sentirem de uma determinada
forma, a temerem certas situações.
A
política é a arte de afetar os corpos e de levá-los a impulsionar certas ações.
Devido a isso, nunca entenderemos nada das dinâmicas dos fatos políticos se
esquecermos sua dimensão profundamente afetiva.
Por
exemplo, não é difícil perceber como, nas últimas décadas, uma máquina de medo
e ressentimento foi colocada em funcionamento.
Esses
são, há tempos, os principais afetos que circulam no campo político. Medo do tempo
que não conhecemos e que pode ser diferente do passado e do presente. Medo de
ficar longe demais da segurança da "nossa terra", de ser assaltado,
de ter sua propriedade violada, da morte violenta. Mas, principalmente, um
ressentimento travestido de pessimismo prudente a respeito dos acontecimentos e
da errância necessária à toda procura.
A
política baseada no ressentimento é, de fato, algo a ser pensado. Talvez
possamos dizer que, em política, o ressentimento é sempre o sentimento
mobilizado contra a errância.
Quando
um acontecimento ocorre, muitas vezes ele não instaura imediatamente uma nova
ordem. Só em situações muito amadurecidas, e por isso mesmo muito raras, vemos
essa passagem imediata de uma ordem a outra. Normalmente, acontecimentos são
aquilo que instaura uma nova errância, com seus erros, suas perdas, seu tempo
confuso.
Esse
tempo confuso é, em certas situações, onde acontecimentos ocorrem "cedo
demais", praticamente inevitáveis. Contra ele, o ressentimento sempre
dirá: melhor que nada tivesse ocorrido, melhor ter ficado na situação passada,
por mais que ela fosse insatisfatória, ou seja, vamos dar um jeito de voltar à
antiga morada, mesmo que ela esteja em ruínas. Basta ver o que hoje lemos a
respeito das revoltas no mundo árabe.
No
entanto, esse tempo confuso produzirá sua própria superação, por mais que ela
demore, por mais que refluxos ocorram, mas à condição de produzirmos novos
afetos. Nesses momentos, cria-se uma divisão entre os que se voltam aos velhos
afetos de sempre e aqueles capazes de adquirir uma nova confiança, uma nova
força, mesmo quando o céu é turvo. Pois eles sabem que nunca haverá nova
política com os velhos sentimentos de sempre.
· * Vladimir
Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP
(Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da Folha de São Paulo, da versão impressa.
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