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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A CIÊNCIA E A JUSTIÇA

Joedson Marcos Silva
Professor de Filosofia

Nos Estados Unidos, dois meios-irmãos, negros e com deficiência mental grave, foram condenados pelo estupro e morte de uma menina de 11 anos. Segundo os advogados de Brown e McCollum, o Departamento de Polícia  forjou testemunhos e escondeu evidências que inocentariam os acusados, na época do julgamento. Depois de um longo interrogatório, sem advogado e sob intensa pressão, McCollum assumiu a culpa de um crime que não cometeu. “Acabei inventando uma história para me deixarem voltar para casa”, teria dito a um jornal.

Assim, com base em falsos testemunhos, no relato de alguém com idade mental equivalente a 9 anos e submetido a forte pressão psicológica, uma primeira versão sobre os fatos foi apresentada, resultando na perda de liberdade de dois deficientes, por três décadas.

Agora, uma segunda versão do episódio veio à tona. Uma comissão designada para reexaminar o caso revelou que nenhuma das provas colhidas na cena do crime continha o DNA dos acusados. Depois de os inocentes passarem 30 anos na cadeia, os testes comprovaram que outro homem foi o responsável pelo crime, em 1983. Henry McCollum, de 50 anos, e Leon Brown, de 46, foram, então, inocentados do crime de estupro seguido de morte.

Não é preciso muita imaginação para conceber uma terceira ou uma quarta versão possível para o mesmo evento. Poderíamos, por exemplo, cogitar que alguém se aproveitou do que se passou para difundir que quem cometeu o crime foi um desafeto seu, ou que um interessado no caso, com convicções diferentes das dos cientistas, consultou um parapsicólogo forense e este apontou apenas um dos acusados como sendo o criminoso.

Para a sorte dos irmãos injustamente presos, um juiz do estado da Carolina do Norte determinou a libertação imediata deles. Ele levou em consideração que o segundo relato era o verdadeiro. É razoável pensar que, mesmo se as duas outras versões que criamos estivessem à disposição da justiça americana, isso não teria alterado a decisão do magistrado. Afinal, os testes de DNA são reconhecidamente o método científico mais seguro para a identificação de pessoas. Eles são como uma impressão digital genética, com grau de confiabilidade que ultrapassa 99,9% de certeza em seu resultado.

Entretanto, algumas tendências intelectuais contemporâneas têm adotado uma atitude de hostilidade em relação às ciências, militando contra os conceitos de "realidade" e de "fato", justamente aquilo que muitos cientistas se empenham em conhecer. Como consequência, a versão científica sobre o mundo passou a ser apresentada - para os adeptos dessas tendências intelectuais -  como mera "construção intelectual", adotada a partir da modernidade, e o relato científico como mais um “discurso” ou “narrativa” entre tantos.

Caso a perspectiva acima seja verdadeira, não poderíamos consistentemente discordar do juiz se sua decisão fosse outra, embora, arrisco dizer, a maioria de nós intuiria que uma tal atitude seria absurda. Se entendo corretamente os críticos da busca objetiva de compreender a realidade, eles estão questionando essa nossa intuição.

Mas, será mesmo que não há qualquer padrão de racionalidade imparcial capaz de avaliar diferentes versões sobre como as coisas se passam no mundo? E se todas as alegações são mesmo meras "narrativas" igualmente legítimas e equivalentes, não seria uma consequência desse fato que a escolha do juiz, nesse caso, teria de ser considerada arbitrária?

Respostas interessantes para essas duas questões podem vir de uma perspectiva menos pessimista em relação à capacidade de entendermos os eventos a nossa volta. Embora menos popular, ela está mais próxima do senso comum e talvez por não recusar o que este acolhe de bom grado, não pareça muito atraente a quem quer se distinguir por uma maior erudição.

Essa alternativa não descrê da capacidade científica de fornecer algum conhecimento objetivo sobre a realidade, nem coloca em causa certas concepções da tradição intelectual ocidental. O que não significa, contudo, uma atitude de desprezo para com outras tentativas de compreensão do universo, como as religiões e o conhecimento popular. A relação entre a ciência e o saber comum não é de total descontinuidade e é possível encontrar convergências entre certas posições religiosas e teorias éticas sofisticadas.

Não se trata, por conseguinte, de apenas inverter os sinais, passando a exibir uma admiração fanática pela ciência e a atacar qualquer forma de espiritualidade. Isso seria repetir exatamente o que há de pior no fanatismo religioso, e nada justifica a intolerância em relação às pessoas que possuem convicções diferentes das nossas.

O espírito democrático e o respeito às diferenças passam pelo reconhecimento do pluralismo de ideias e pela admissão de que vivemos numa comunidade com uma diversidade de religiões, ideologias e orientações políticas.

Além disso, não devemos buscar nas ciências respostas para questões que estão além do seu domínio, nem negar o valor de outras atividades humanas. Há muitas visões de mundo diferentes da ocidental e, por meio delas, nossas próprias posições podem ser iluminadas. Por isso, é interessante conhecê-las, assim como conhecer a história das religiões e das culturas.

Mas não devemos, por isso, deixar de criticar o que parece estar errado. Desde que nos concentremos nas ideias e o debate não ultrapasse a fronteira da racionalidade, sendo feito de modo educado, a postura crítica é aceitável. Essa é a forma de se evitar que os seguidores de uma religião ou ideologia, mesmo em maior número, imponham as suas convicções aos restantes dos indivíduos.

Dessa forma, precisamos encarar seriamente crenças erradas que, na prática, podem ter um enorme impacto sobre o que acontece às pessoas, fazendo com que passem por sofrimentos desnecessários. Pense no caso de quem acredita ser um bom remédio para curar uma doença algo que acaba agravando-a ou numa desinformação científica que possa estar na base de preconceitos racistas, sexistas ou alguma forma de fundamentalismo religioso.

Nesses casos, assim como é verdade que devemos valorizar os aspectos interessantes de abordagens não científicas, temos de reconhecer os valores apreciáveis da ciência, como a admissão de que não é infalível e seu esforço constante para se autocorrigir. Valores esses que permitiram rejeitar a análise da aparência física dos réus  em processos judiciais e adotar a coleta de DNA como forma de identificação criminal.

3 comentários:

Guto Couto disse...

O professor Joedson escreve sobre assuntos complexos de uma forma que nos faz refletir e compreender certos aspectos das atitudes humanas antes restritas à academia.

Parabéns!

Joedson disse...

Valeu, Guto! Obrigado pelas palavras de incentivo.

Anônimo disse...

Interessante a argumentação das ideias a partir dos exemplos reais, a ciência tem um papel relevante nesta sociedade. Apesar da relação necessária do espirito democrático e respeito a tolerância às diferenças, vivemos tempos cada vez mais arbitrários.