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domingo, 9 de fevereiro de 2014

HOBBES EXPLICA: O MARANHÃO NO ESTADO DE NATUREZA

Mulher urina no centro de São Luis, na praça Deodoro. Foto: Biaman Prado
O filme “Gangues de Nova York” (2002), dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Leonardo DiCaprio, é uma interessante ilustração para entender o Maranhão contemporâneo.

Baseado no livro homônimo, de 1928, escrito por Herbert Asbury, a obra cinematográfica é tão real e atual quanto os ensinamentos do filósofo Thomas Hobbes (1588 - 1679) no livro “Do cidadão”.

Os conflitos entre gangues no Maranhão resultaram em cabeças cortadas no presídio de Pedrinhas, ônibus incendiados, assassinato de uma criança, mortes de policiais e, principalmente, a sensação de medo na população.

Pedrinhas é apenas um detalhe a ser visualizado na obra de Hobbes. O Maranhão pré-político, tomado pela corrupção, viciado no desvio do dinheiro público, marcado pela ausência ou desleixo dos administradores, onde não há regra nem ordem, é o melhor campo para entender o filósofo inglês.

A violência no sistema penitenciário é um sintoma da brutalidade política imposta no Maranhão pela ausência e/ou desinteresse do poder público, práticas tão comuns quanto matar presos em Pedrinhas.

Nos últimos 50 anos o Maranhão vem sendo violentado na sua institucionalidade, depredado nos princípios republicanos, dilapidado nos seus valores e degenerado na conduta da maioria dos seus administradores.

Para entender essa colocação, sigamos os passos de Hobbes.

ESTADO DE NATUREZA

Embora sua obra mais conhecida seja “O leviatã” (1651), Hobbes, segundo seus comentadores, foi mais profundo em “Do cidadão” (1642), escrito em latim e publicado na França, de olho em um leitor europeu mais qualificado para repercuti-lo.

As duas obras dialogam e recorrem ao conceito de “estado de natureza” para caracterizar uma situação na qual o homem está dominado pelas suas paixões (ganância, medo, ódio, amor, liberdade exacerbada, inveja, força), submetido à vontade arbitrária e irracional e guiado pela conduta instintiva e animal. Nessa condição, o homem busca a satisfação imediata das suas necessidades, de maneira egoísta e individual.

No estado de natureza vigora a desagregação. Todas as pessoas são livres para fazer o que bem entendem. Em tradução mais direta, o estado de natureza é a “guerra de todos contra todos.”

Hobbes restaurou a máxima do escritor latino Tito Plauto - “o homem é o lobo do homem” - para caracterizar o instinto predador no estado de natureza, no qual todos os homens têm direito a tudo.

O estado de natureza é, portanto, um estágio anterior à entrada do homem na comunidade política.

Vivendo sob o predomínio da insegurança e angústia, regidos pela força, todos os homens são iguais no estado de natureza.

Mas, essa igualdade é perigosa e provoca medo. Imerso no território das paixões, o homem exacerbadamente livre vê-se diante da ausência de laços políticos, de estabilidade e segurança.

ESTADO CIVIL: O PACTO

Segundo Hobbes, o estado de natureza é autodestrutivo e inviável para a vivência em sociedade.

Diante do medo e da insegurança, o homem manifesta o desejo de superar o estado de natureza. Para isso, abdica do direito a todas as coisas, atenua as paixões desenfreadas e controla a liberdade exacerbada.

A superação do estado de natureza ocorre através do pacto, pelo qual o homem renuncia à liberdade individual em função de segurança e estabilidade no convívio em sociedade.

Para assegurar a paz e a segurança, cada homem renuncia ao direito absoluto sobre todas as coisas em favor do soberano, senhor absoluto e doravante donatário dos poderes individuais.

O processo de transição do estado de natureza para o Estado civil dá-se pela transmissão de poderes ao soberano, por meio do pacto, instituindo a comunidade política, as leis, a garantia de direitos, a imposição de deveres etc

A razão passa a guiar o processo através do qual, no pacto, o homem renuncia à sua liberdade individual para submeter-se ao soberano.

Eis o nascimento da autoridade política.

O MARANHÃO SEM PACTO

“Do cidadão” deve ser lido olhando o Maranhão. A cada página você encontra na obra os conceitos de Hobbes adequados para entender a realidade já explicada por outros escritores, como o padre Antonio Vieira.

A proposição de Hobbes, visando organizar a comunidade política, ainda não vingou aqui. Nem precisa ir longe do Palácio dos Leões, sede do governo maranhense, para visualizar o estado de natureza hobbesiano.

As elucubrações do filósofo estão in(diretamente) materializadas nos esgotos a céu aberto espalhados em toda a cidade (até na área nobre!), nas favelas próximas ao palácio, na ausência de calçadas, nos canteiros mal cuidados, na falta de regra no trânsito, nos banheiros improvisados em pleno centro da cidade, nos esgotos a céu aberto e em fartas outras imagens.

Nem água potável a população maranhense tem direito.

Na ausência do Estado, qualquer pessoa faz a sua lei, como se estivesse no estado de natureza. Jogar lixo pela janela do carro na rua é tão natural quanto transgredir as regras do trânsito, estacionar sobre as calçadas inexistentes, colocar som alto nos carros ou urinar na praça pública.

Em qualquer lugar de São Luís há esgotos vazando, praças ocupadas por lonas de plástico onde se vende comida de todos os tipos, misturando-se com banheiros improvisados e odor de urina e fezes – o mesmo cheiro da corrupção que se espalha pelo estado inteiro.

Essas cenas, tão comuns no Maranhão belo e de gente trabalhadora, porém maltratado, remetem às imagens grotescas das cidades arranjadas, reconstruídas nos filmes cuja narrativa atravessa o final do feudalismo e o início do capitalismo.

Basta ver as barracas de palha nas laterais da ponte sobre o Estreito dos Mosquitos, a visão dantesca no entroncamento rodoviário de Peritoró ou a cidade de Timon.

Tudo lembra o atraso, a sujeira, o passado, o desleixo, a lama ou a poeira ao redor dos postos de gasolina, beirando as estradas onde a miséria sempre nos assusta, como um fantasma no asfalto, ladeado pelo latifúndio improdutivo com suas cercas e a miséria dentro e fora delas.

A ponte entre a ilha e o continente, a conexão do Maranhão a uma parte do Brasil (Peritoró) e a fronteira com o Piauí (Timon), para ficar apenas nesses exemplos, são a excelência do grotesco e do desprezo pela coisa pública.

O “ANTI-SOBERANO” E SEUS SEGUIDORES

Para Hobbes, a figura do soberano é central no processo de instituição da comunidade política. Donatário da administração dos conflitos, o Estado civil é construído mediante a promessa de garantir segurança e estabilidade aos súditos, que renunciam à sua liberdade individual e transferem seus poderes ao mandatário.

No Maranhão, o soberano é o avesso.

Salvo as honrosas exceções, nossas cidades seguem a regra da capital. São mal geridas ou simplesmente abandonadas.

A maioria dos municípios sintetiza um misto de incompetência administrativa, desleixo pela coisa pública e corrupção.

Os prefeitos olham-se no espelho e enxergam pequenos oligarcas, coronéis à imagem e semelhança do mau exemplo de administrador e homem público José Sarney, o anti-soberano por excelência.

Se para Hobbes a figura do soberano inspira segurança e proteção aos súditos, na realidade maranhense o soberano é o carrasco, o mal-feitor, o algoz do seu povo. Em alguns casos, o tirano.

Essa tirania se manifesta, principalmente, no contraste entre opulência e miséria. Ao lado das palafitas de São Luís corre solta a compra abusiva de apartamentos de R$ 5 milhões na península da Ponta d’Areia.

No Maranhão miserável, sem indústrias, como justificar o valor dos apartamentos tão acima da média nacional? E como explicar que sejam todos vendidos na planta, rapidamente?

Estamos possuídos pelos demônios políticos da corrupção e da pilhagem, inspirados na mais sórdida miséria humana - a miséria da política - na qual se reproduz nababescamente a aristocracia parasita que passeia em Paris e gasta em Las Vegas, enquanto as cidades do Maranhão apodrecem.

HOBBES E OS DESVIOS NAS FORMAS DE GOVERNO

A proteção dos súditos e a instituição do direito são dois argumentos centrais no pensamento de Hobbes para a formação da comunidade política, sob o monopólio da força pertencente ao soberano.

São essas, em linhas gerais, as bases do pacto que garante a superação do estado de natureza.

O pacto, para Hobbes, seria uma possibilidade de geometrização da política, ideia da qual ele recuou posteriormente.

“Do cidadão” é organizado em três partes: liberdade; domínio; e religião. Hobbes apresenta no livro as formas de governo - democracia, aristocracia e monarquia - e aponta as possibilidades de desvio em cada uma delas.

Monarquista convicto, o filósofo não escondeu suas preferências na obra.

Ele via riscos de a monarquia desaguar na tirania. E, atualíssimo, alertava para o desvio na aristocracia transformar-se em oligarquia.

Alguma coincidência com o Maranhão?

É tão contemporâneo o pensamento de Hobbes para a realidade maranhense que aqui a oligarquia é uma versão transgênica da aristocracia, formada por uma elite parasita repugnante.

SOBRE A LEGITIMIDADE DO GOVERNANTE

Outro apontamento fundamental de Hobbes diz respeito à legitimidade do soberano, sustentada na capacidade e na vontade de governar.

Um soberano incapaz e desinteressado não é legítimo.

No governo Roseana Sarney (PMDB), por exemplo, está explícito o duplo desleixo. Em quase quatro anos de governo ela não construiu sequer uma escola de ensino médio. E atribuiu o crescimento da violência à “nossa” riqueza (?!)

Hobbes serve não só para explicar o Maranhão, mas também para instruir o anti-soberano. Monarquista militante, o filósofo tinha verdadeiro desprezo pela democracia.

Para fechar, retomemos o filme "Gangues de Nova York". Ele é perfeito para compreender a cultura política mais reproduzida no Maranhão – a corrupção.

Esse capítulo Hobbes não escreveu, mas são tantos os episódios de violência e corrupção que um destacado representante da oligarquia teria dito que o crime organizado está enraizado nos três poderes do Maranhão.

Referências:

HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Um comentário:

Unknown disse...

A análise do jornalista coloca em evidência as mazelas "clássicas" de uma cidade que poderia ser considerada a "jóia" da região norte/nordeste, estando a curta distância da África e da Europa, tendo portanto a chance de se deixar envolver pelas ideologias que historicamente foram mais avançadas. Do continente-mãe: África (cultura coletivista das tribos) e do continente "colonizador": Europa: ideário da Revolução Francesa.
Mas, como aponta o autor, em sua crítica percuciente, estamos ainda no ESTADO NATUREZA. Tudo que aqui ocorre de aberração, em termos de gestão da RES PUBLICA, cai na categoria de que é isso é próprio da CULTURA MARANHENSE.
QUAL CULTURA? A CULTURA DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA DA RIQUEZA E DOS DIREITOS HUMANOS? ATÉ QUANDO?
Maria de Fatima Felix Rosar