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sábado, 22 de março de 2008

Pés


Algumas seqüelas da vida levaram-me a mudar hábitos, estilos e até os calçados. Tênis agora é com molejo, recomendou o ortopedista.

Assim, tive de doar o meu companheiro rústico das caminhadas, ainda em bom estado. Cedi a um vendedor ambulante que me oferecia CDs e DVDs piratas numa pizzaria do Cohatrac.

De mesa em mesa, tentava emplacar vendas em uma dessas noites chuvosas de março. Sem sucesso, filou-me uma fatia de pizza e entabulamos meia conversa.

Papo vai papo vem, lembrei-me do tênis e ofereci a ele. Coube como luva. Imediatamente, abandonou as sandálias desgastadas da itinerância pirateira e adotou o novo calçado, emendando:

- O senhor não sabe o bem que me fez. Segunda-feira eu ia tentar um emprego fixo, mas para fazer o teste eles exigem sapato ou tênis e eu não tinha.
- Agora possui o tênis e meus votos de boa sorte, devolvi.

O emprego é de locutor propagandista em uma loja da rua Grande. Ele já havia trabalhado antes na função, mas entrou no ramo da pirataria para livrar outros trocados e acabou ficando.

Com a forte concorrência no mercado paralelo, resolveu tentar de novo o emprego fixo. Fiquei pensando na palavra oportunidade. Desejada por tantos, não bate facilmente às portas de todos.

A pobreza traz muitas limitações. Conheço vários casos de pessoas batalhadoras, ávidas por uma oportunidade, que esbarram em obstáculos simples como a falta de um calçado, a ausência de uma conta bancária, de documentos e até do vale-transporte para ir à luta em busca de um emprego.

Tem ainda os pobres com algum apoio, mas sem entusiasmo. E há outras pessoas, mais favorecidas, com a força da família e dos amigos, que deixam as oportunidades passarem na porta todos os dias.

Espero que meu ex-tênis ajude na batalha do vendedor de mídia pirata. Torço para percorrer caminhos do sucesso, ruas da prosperidade, estradas da vitória e chegar à calçada da fama.


Por falar em calçada e calçados, lembrei-me também de um sapateiro do Camelódromo de Imperatriz. Eu estava percorrendo a praça em busca de depoimentos para uma reportagem sobre comércio informal, quando deparei com aquele homem simples, sentado sobre sua banca após o almoço, calça arregaçada, camisa meio surrada aberta no peito.

Mas era de uma elegância emblemática. Tinha um olhar imponente, contemplando o mormaço sob a sombra de um chapéu marrom-escuro, em uma encantadora harmonia de tons com a roupa e a pele negra.

Tentei uma aproximação com aquele tipo meio místico. Sem sucesso. Pedi para tirar uma foto. Ele negou. Não deu a mínima para o meu interesse. Fiquei meio frustrado, mas não desisti de arrancar-lhe alguma impressão.

Arrodeei a praça e quando voltei ele já estava sentado, trabalhando. Simulei estar à procura do seu vizinho de banca e encostei-me à sombra de uma árvore para esperar, cabisbaixo.

E nesse instante percebi a imagem ideal. Os pés do sapateiro estavam enfiados em uma sandália enorme, deixando sobrar uma lapa de borracha para trás. Estava ali o contraste à elegância do chapéu e do olhar fixo no infinito.

Acionei a máquina para baixo e, sem que ele percebesse, capturei esta imagem. Se em casa de ferreiro o espeto de pau, em banca de sapateiro o chinelo é de sola.

Faltou a ele calçar as sandálias da humildade. O chinelo grande é do tamanho do seu orgulho.

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