ARTIGO ESPECIAL DE DOMINGO
Ed Wilson Araújo
Sarney & Lula: estigma da corrupção contaminou o PT |
A retomada do
pluripartidarismo em 1979 marcou a reconstrução do processo democrático no
Brasil, amadurecido com as Diretas Já (1984) e a Assembleia Nacional
Constituinte (1986), seguidos da eleição presidencial de 1989. Esses três
momentos marcaram a consolidação da democracia e o amadurecimento das
instituições parlamentares e judiciais, antigas reivindicações contidas pelo
golpe militar de 1964.
Do ponto de vista político esses acontecimentos representaram a retomada
das bases democráticas, materializadas na livre manifestação do pensamento
(assegurado na Constituição Cidadã de 1988), eleições diretas, conquista dos
direitos da mulher, voto aos 16 anos, liberdade e autonomia para a organização
sindical.
As pulsações
democráticas tanto serviram para garantir o voto direto quanto para derrubar
presidentes eleitos, a exemplo do impeachment
do presidente Collor de Melo, em 1992, bem como pela recolocação do impeachment na pauta política em 2015. A
era dos protestos, iniciada em junho de 2013, incorpora os sentimentos
reivindicatórios presentes em distintos momentos da História do Brasil.
Na economia, tomando o arco temporal de 1994 (Plano Real) a 2013, o Brasil foi
marcado pela superação do nacional-desenvolvimentismo e deflagração do
social-desenvolvimentismo, incluindo neste pacote os programas sociais criados
nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e aperfeiçoados nos mandatos de
Lula (PT).
Nos últimos 20 anos, o
Brasil viveu um cenário de estabilização econômica e política; porém, sob
influência dos humores e dissabores do cenário internacional, especialmente a
crise econômica de 2008, cujos desdobramentos estão surtindo efeito em 2015.
A estabilidade do Plano Real,
contudo, teve um custo. Tanto os governos tucanos quanto os petistas pagaram o
preço alto para garantir a governabilidade, através de um presidencialismo de
coalização, notabilizado pelo apoio dos partidos mediante a repartição dos
postos de comando na Câmara dos Deputados, no Senado, nos ministérios e nos
escalões inferiores.
DO “CENTRÃO” AO
MENSALÃO
O PMDBismo contamina todos os governos, desde FHC |
O presidencialismo de
coalização teve outras denominações e métodos que já estavam presentes desde a
Assembleia Nacional Constituinte, durante o governo José Sarney, representado
pelo “Centrão” (PMDB + PFL), um aglomerado conservador que atuava no parlamento
mediante a distribuição de cargos e favores, boicotando as votações quando não
era atendido.
Detalhe: o “Centrão”
foi fundamental para garantir a ampliação de mandato presidencial de José Sarney (PMDB) para cinco
anos.
O “Centrão” teve a
versão radical do “Mensalão”, mas ambos constituem a mesma prática política: o
PMDBismo. Trata-se uma cultura política que domina o sistema partidário
brasileiro. Moeda da governabilidade, o PMDBismo é o cimento político do
conservadorismo democrático, caracterizado pelos vícios de garantir as
re(eleições), ter segurança no(s) mandato(s) através da formação de uma
superbase de apoio, alimentada com cargos, favores e, na versão degenerada, o
pagamento em dinheiro nas votações.
Na contramão dos
avanços democráticos conquistados nos anos 1980 e 90, o PMDBismo deformou o
parlamento em um condomínio hierárquico do presidencialismo de coalizão,
estruturado na formação de bancadas suprapartidárias a defender unicamente os
interesses das corporações: do agronegócio (“bancada do boi”), do crime
organizado (“bancada da bala”), dos negócios escusos do futebol/CBF (“bancada
da bola”), das denominações religiosas fundamentalistas, dos banqueiros, dos
fundos de pensão etc.
Após a morte de Tancredo, Sarney operou no Centrão o mandato de cinco anos |
Em tradução direta, a
maioria dos parlamentares é lobista e os partidos atuam no Congresso Nacional com
métodos e técnicas que se aproximam de quadrilhas organizadas para saquear os
cofres públicos.
O FATOR LULA
Lula selou aliança com Paulo Maluf, e elegeu Hadad |
Ao ganhar a eleição de
2002, o presidente Lula e o PT tinham dois caminhos: romper com o capital
através de mudanças radicais ou fazer reformas dentro da ordem. Esta segunda
opção conduziu a uma coalização de forças políticas formada por setores
conservadores que passaram a disputar hegemonia no governo. Lula construiu um
pacto conservador e, aos poucos, movimentou o PT mais à direita.
Paralelamente, o
governo desencadeou grandes programas sociais, cujos resultados foram a
inclusão de 40 milhões de pessoas que saíram da condição de miséria e
ingressaram na pobreza. A valorização do salário mínimo e a geração de empregos
consorciaram-se ao Bolsa Família e aos demais programas como as maiores
conquistas dos dois mandatos de Lula, elegendo facilmente Dilma Roussef, em
2010.
Os 12 anos do PT no
governo podem ser traduzidos no paradoxo de um país que combate a pobreza
conservando o atraso político. Para assegurar a governabilidade, na lógica das
mudanças dentro da ordem liberal, o pacto conservador manteve a tradição de
alimentar o PMDBismo, uma prática política clientelista e representativa dos
interesses dominantes: ruralistas, banqueiros, industriais e empreiteiros.
A contradição entre a universalização dos
programas sociais e a manutenção do pacto conservador teve um abalo em
2011/2012, quando a presidente Dilma fez um ensaio desenvolvimentista e tentou
modificar a política econômica, confrontando o capital financeiro através de
medidas como a redução dos juros, mas o projeto fracassou. Em vez de avanços, o
governo recuou, inclusive adotando privatizações e um ajuste fiscal recessivo,
sinalizando com a volta da inflação.
Em decorrência desse
cenário, o governo que consegue se identificar com a redução da miséria é o
mesmo que se aproxima das forças políticas controladas por figuras públicas
estigmatizadas pela corrupção: Renan Calheiros, Collor de Melo, José Sarney,
Paulo Maluf, cada qual representando uma federação de interesses.
MUTAÇÕES NO PT
Principal marca do PT foi desconstruída |
Formado pelas
militâncias sindical, eclesiástica, movimento estudantil e intelectuais de
esquerda, o PT chegou ao poder fazendo um movimento pendular ao centro,
construindo uma tática eleitoral vitoriosa e exitosa nos dois mandatos de Lula.
O empoderamento excessivo do presidente, no entanto, provocou um movimento de
dependência do partido às decisões e orientações pessoais de Lula, à revelia
das formulações programáticas e das instâncias partidárias.
O lulismo se
caracteriza, portanto, como uma construção política que paira acima do partido
como força organizadora de hegemonia. O lulismo é a efetivação de uma prática
política suprapartidária que condensa os interesses pragmáticos acima dos
interesses programáticos do partido, que deveriam ser o principal eixo da ação
política.
Não há como negar, no
entanto, os frutos colhidos nos governos petistas, simbolizados na figura do presidente Lula. O lulismo
carrega, portanto, o sentido de uma invenção política de inclusão social, capaz
de retirar 40 milhões de pessoas da miséria, de valorizar o salário mínimo em
72%, incrementar a geração de empregos e a retomada do crescimento.
Ato
contínuo, o lulismo significou um alinhamento eleitoral com a pobreza, aspecto
fundamental na reeleição de Dilma Roussef em 2014.
Porém, a inspiração
socialista-humanista que estava na espinha dorsal do PT, onde se construiu um
projeto de esquerda, cedeu lugar a uma convergência de interesses entre o
lulismo e o PMDBismo, o primeiro como força suprapartidária e o segundo como
uma federação de interesses da burguesia.
Construído sob o signo
da ética e da democracia, o partido encharcou o Brasil de esperança em uma
forma de fazer política distinta da tradição. Ocorre que, desde 2002 o PT vem ampliando o movimento
pendular ao centro-direita, ditando aos seus militantes, parlamentares e
dirigentes um mantra: “menos trabalho de base e mais pragmatismo eleitoral”.
Foi assim que tudo começou, até parar no noticiário policial.
Indignado, o povo protesta, com razão, contra o partido que prometeu fazer tudo diferente.
As grandes
manifestações de rua representam a saturação do PMDBismo, com diferentes
matizes, mas uma característica central: a despolitização da política. O ódio a
Dilma e ao PT viraram o centro das reivindicações, como se toda a corrupção do
Brasil fosse exclusividade do petismo.
Porém, não podemos
descartar que a revolta contra o PT não é só alimentada pela cobertura
midiática. É a repulsa pela traição e pela decepção petistas, fonte dos afetos
que dominam as ruas.
DEMOCRACIA EM TRANSE
FHC & Sarney: governo tucano também foi refém do PMDB |
A partir dos protestos
de 2013, evidencia-se o descompasso entre a cultura política viciada e uma
cultura política da base da sociedade. No cenário midiático, as redes sociais
quebram o monopólio das fontes de informação e a oportunidade de debate,
provocando mudanças na maneira de formar opinião.
Nesse contexto, o
pacto conservador sem mudanças profundas trouxe à tona as velhas contradições
do capitalismo, expostas nos protestos, quando milhões de pessoas foram às ruas
reivindicar uma pauta ampla e difusa, sinalizando um grande passivo do governo
nas áreas de educação, saúde, mobilidade e combate à corrupção.
Estamos diante de uma
crise não só de um partido, mas da democracia brasileira, colonizada pelo
presidencialismo de coalização sob a égide do PMDBismo.
Só uma reforma
política radical pode abrir um horizonte a essa crise, passando necessariamente
pela eliminação total do financiamento privado das campanhas eleitorais.
É
preciso destruir a matriz do partido/agente financeiro, do político/negociante
e do eleitor/ mercadoria que alimentam as engrenagens clientelistas desde as
câmaras de vereadores até o Congresso Nacional.
A reforma política é
fundamental para retomar o amadurecimento das instituições partidárias e
eleitorais. Nosso parlamento não tem mais condições éticas de funcionar como
balcão de negócios. Tem de reaver o protagonismo no debate sobre um projeto
nacional, evoluindo do reformismo lento ao avanço do crescimento com
distribuição de renda.
O PT, sob o manto do lulismo, ficou refém do PMDBismo, cada dia mais voraz. Está nessa simbiose o centro da crise na democracia brasileira.
Jornalista, blogueiro, professor da UFMA, doutorando em Comunicação pela PUC do Rio Grande do Sul (PUCRS) e diretor da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias no Maranhão (ABRAÇO MA). Email: edwilson_araujo@yahoo.com.br
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