Há critérios jornalísticos que perpassam várias práticas e concepções. Mesmo recebendo outras denominações, papéis e relações na produção de notícias, valores como atualidade, relevância pública, diversidade de fontes e checagem dos fatos apresentam-se como discernimentos profissionais norteadores. Há, no entanto, interesses – presentes, principalmente, nas instituições comerciais – que comprometem e inviabilizam a autonomia do campo jornalístico, necessária para garantir o papel social da profissão. São articulações econômicas, sociais, políticas e culturais que distorcem não só a realidade, mas o ethos do jornalismo. Para fazer qualquer análise crítica de uma matéria é necessário se ater não só aos critérios apresentados no texto, mas os interesses que circulam no contexto.
Na edição da revista IstoÉ de número 2.237 (23/9/2012), uma reportagem chama a atenção por não só descumprir esses critérios, mas por explicitar vários interesses institucionais. A matéria sob o título “O uso político das rádios comunitárias” traz, logo de início, uma aberração primária: qual a atualidade do fato? O dado mais recente apresentado data de novembro de 2011. A notícia foi, então, publicada com pelo menos 10 meses de atraso.
Se não isso bastasse, outro erro fundamental causa espanto. A reportagem afirma que Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço) recebeu, nos últimos três anos, R$ 21 milhões em convênios com o governo federal sem indicar a fonte dessa informação. Foi a Procuradoria Geral da República? O Ministério Público? Uma denúncia anônima? Ou uma investigação da repórter?
Pois bem, fazendo uma simples pesquisa na internet, no Portal da Transparência encontram-se valores bem diferentes. A Abraço foi, conforme o site, contemplada pelo edital de Mídia Livre do Ministério da Cultura no valor de R$ 240 mil, em 2009. A Agência Abraço, órgão vinculado à Associação, recebeu, nesse período, R$ 400 mil por meio de emenda parlamentar para a realização do VII Congresso Nacional da entidade, em 2010, e mais R$ 168 mil para repassar às rádios, instaladas no Distrito Federal, participantes do Projeto Comunidade 980, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Cabe perguntar: como R$ 808 mil se transformaram, na matéria da IstoÉ, em R$ 21 milhões?
A situação lembra um dos mais clássicos casos de distorção jornalística, a reportagem “Até tu Ibsen?”, da Veja. Em novembro de 1993, a revista transformou, intencionalmente, uma transferência de R$ 1 mil do então presidente do Congresso Nacional, Ibsen Pinheiro, para sua filha numa transação de R$ 1 milhão, causando sua injusta cassação. Só que no caso da IstoÉ a distorção foi multiplicada mais de 21 vezes do valor real.
Os erros não cessam por aqui. A reportagem “O uso político das rádios comunitárias” afirma a existência de um pedágio de 20% para o repasse dos recursos provenientes de convênios. A denúncia seria da Rádio Utopia FM, de Planaltina (DF), que teria gerado um processo em curso. Com uma simples pesquisa site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal é possível constatar que o processo foi arquivado em março de 2012.
Os equívocos continuam. Segundo a IstoÉ, a cobrança do suposto pedágio seria comandada pelo dirigente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Sóter, também coordenador executivo da Abraço. Outra simples pesquisa no site do PT do Distrito Federal revela que Sóter não participa de qualquer instância do governo federal. No entanto, ainda outra informação falsa. O coordenador executivo da entidade é qualificado como funcionário do Ministério da Educação, e dado essa condição facilitaria convênios das emissoras com o ministério. Sóter é funcionário do Instituto Tecnológico Federal e não há nenhum convênio de rádios comunitárias com o Ministério da Educação, como se constata no Portal da Transparência.
Para coroar aos intermináveis equívocos, a reportagem afirma que um inquérito civil apura o caso. Com uma simples ligação para a Procuradoria Geral do Distrito Federal se verifica que o procurador Paulo Roberto Galvão de Carvalho despachou pelo arquivamento do caso, e que deverá ser julgado pelo colegiado em outubro.
Por trás de tantos equívocos, falta de apuração, falta de fontes e ausência de atualidade, cabe questionar: seria essa reportagem um reflexo de simples erro jornalístico? De despreparo da repórter?
Indo além do texto, percebem-se outros interesses envolvidos na pauta refletindo quem são os principais prejudicados na matéria. Primeiro, a Abraço, entidade que organiza as rádios comunitárias, alvo das principais acusações da revista. A Associação, fundada em 1996, no momento da reivindicação da regulamentação do serviço de radiodifusão comunitária, incomoda empresários da comunicação por lutar pelo fortalecimento dessas emissoras, que tiram a audiência e os investimentos de rádios comerciais, e por lutar pela democratização da comunicação, contra os oligopólios midiáticos e pela regulamentação da comunicação.
Esses posicionamentos colocam, pressupostamente, empresas de comunicação – como a Editora Três, que edita a IstoÉ – e a Abraço em posições opostas. No pano de fundo da reportagem, o segundo atingido pela reportagem é o Partido dos Trabalhadores, pelo suposto favorecimento ilícito de rádios comunitárias, realizado por um governo do PT e operado por um dirigente petista. Às vésperas de uma eleição, uma das consequências possíveis seria um prejuízo à imagem do partido nas disputas eleitorais.
Num contexto mais amplo, no momento em que se pressiona o governo federal por um marco regulatório das comunicações, a reportagem traz uma tácita ameaça: a regulamentação causará prejuízos para quem a propuser ou implantar, seja governo, movimento sociais ou emissoras comunitárias. A análise crítica de textos e contextos convence a sociedade da necessidade do novo marco regulatório das comunicações.
[Ismar Capistrano Costa Filho é jornalista, mestre em Comunicação pela UFPE, doutorando em Comunicação pela UFMG, membro da diretoria da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária]
2 comentários:
Que a reportagem da revista ISTO É contém uma série de mentiras, é óbvio! - assim como o desmentido na nota divulgada pela Abraço Nacional!... Quanto ao presente artigo de ISMAR CAPISTRANO é, no mínimo, ingênuo.
Para ilustrar uma das inúmeras mentiras constantes na nota da Abraço é só acessar o TJDFT, que CONDENOU A AGÊNCIA ABRAÇO em 1ª e 2ª instâncias A PAGAR INDENIZAÇÃO A RÁDIO UTOPIA - exatamente PELA COBRANÇA INDEVIDA DE 20%!!! Vide endereços abaixo.
Quem quiser ir direto à sentença é só digitar:
http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPGM=tjhtml34&ORIGEM=INTER&CIRCUN=8&SEQAND=65&CDNUPROC=20110810023957
Quem quiser acompanhar todo o processo é só digitar:
http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=tjhtml105&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&CIRCUN=8&CDNUPROC=20110810023957.
O Ministério Público pediu o arquivamento da queixa PORQUE a EBC nos esclarecimentos prestados admitiu não haver prejuízos de MAIOR MONTA ao erário público - MAS ADMITE que as metas instituídas no Convênio entre a EBC e a AGECOM não foram cumpridas, o que ensejou a NÃO continuidade do Convênio. Ademais, para o Ministério Público HOUVE SIM A COBRANÇA INDEVIDA DE 20% COMO TAXA DE GESTÃO!!!
Aviso aos navegantes: essa história ainda não terminou.
Nelson Bailão
Há uma série de mentiras nessa reportagem, uma coisa porém é verdadeira: a Agência Abraço cobrou 20% de pedágio às RadComs participantes do Convênio com a EBC. A Rádio Utopia não aceitou tal situação. Em virtude disso foi perseguida pelo senhor Sóter. As demais rádios lavaram as mãos. A Rádio Utopia ganhou na Justiça Comum uma indenização por danos morais no valor de R$ 6 mil reais. Não há mais como a Agência Abraço recorrer da sentença.
Quem quiser ir direto à sentença é só digitar:
http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPGM=tjhtml34&ORIGEM=INTER&CIRCUN=8&SEQAND=65&CDNUPROC=20110810023957
Quem quiser acompanhar todo o processo é só digitar:
http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=tjhtml105&SELECAO=1&ORIGEM=INTER&CIRCUN=8&CDNUPROC=20110810023957.
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