Tudo começou com o ônibus errado. Ele deu voltas por ruas
nunca dantes navegadas. Desci a esmo. Perdido. Fazia muito frio. O dia tinha
cor de chumbo. Dava vontade de ter um pincel gigante para colorir o céu com
manchas de tinta guache.
Andei a esmo, sem GPS, com os meus sentidos trocados: as
orelhas farejavam, as narinas ouviam e os olhos saboreavam as paisagens.
O corpo retorcido pelo frio animou-se com uma sonoridade longínqua
que invadia a rua como um cheiro café matinal tomando conta da casa.
Aquele som convidava a um banquete musical. E foi me guiando
até chegar a um charmoso sobrado antigo. Da sacada pendia uma placa onde estava
escrito “Morada dos Artistas”.
Ao pé das duas folhas rústicas da porta o tapete era ainda
mais convidativo: “entre sem bater”. A única batida permitida era a do coração, ao escutar o som
vindo da parte superior do prédio, acessada por uma escada circular de madeira.
Àquela altura do dia, cada degrau era uma epopeia, narrada
pela imagem acústica que me aguardava acima.
Ao centro da sala, cercada por uma audiência exótica
disposta em círculo, uma mulher tocava violoncelo.
Mas, não era o simples manejo de um instrumento. Ela fazia
uma cópula musical naquele instante mágico brindado com a chuva que começava a
cair aos primeiros acordes da suíte número 1 de Johann Sebastian Bach.
Das janelas, os pingos escorriam pelas vidraças como se bailassem
para celebrar os sons dos anjos em estripulias com suas harpas imaginárias.
Aquela manhã foi uma celebração à beleza. Toda a harmonia da
natureza sintetizava a cena da mulher de cabelos longos abraçada ao violoncelo.
Ela domava o instrumento com a habilidade de um toureiro na
arena. A sessão musical era um filme de Almodovar. As 70 partes do violoncelo
plasmavam-se naquela fêmea em riste. Os dois compunham, enfim, um só corpo.
Os cabelos dourados dela esparramavam-se sobre o
instrumento, apertado contra o corpo pelo entrelace das pernas torneadas,
enquanto a música atravessava o universo.
O violoncelo parecia uma extensão do corpo da artista, como
se fosse seu útero dilatado pela gravidez da música. Ela estava prenha dos sons
divinos que gerava a cada combinação entre o deslizar da vareta sobre as cordas
e o movimento dos dedos no braço do cello.
Na mitologia grega, Kairós é filho de Cronos, deus do tempo
e das estações. A palavra designa também o momento certo, oportuno, supremo.
Nos dias de muito frio em Porto Alegre, eu sempre pensava no
tempo bom que viria depois. Agora, estamos na primavera. Dias ensolarados e
coloridos, bons para escrever sobre as memórias do tempo frio.
Aquele momento mágico foi meu kairós, o instante eterno mais
que perfeito eternizado pelos meus sentidos permutados.
Ela tocava a balada de Deus.
Ouça AQUI uma ilustração dessa crônica.
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