Publicado na Folha de São Paulo, o
artigo de Michael Marder foi traduzido pelo professor da UFMA e doutorando em
Filosofia (UFSC) Joedson Marcos Silva.
Embora muito já se tenha dito sobre o envolvimento do filósofo Martin Heidegger com o nazismo, alguns pensadores consideram que a militância do autor
de “Ser e Tempo” foi acidental, não havendo conexões óbvias entre a sua
filosofia e o pensamento nazista.
Com a publicação dos "Cadernos Negros" (ou diários
privados), no início deste ano, a controvérsia volta a ganhar fôlego.
Michael Marder defendeu, recentemente, no "New York
Times”, que há uma grande desconexão entre o preconceito antissemita de
Heidegger e a sua filosofia.
Veja o artigo integral publicado na
Folha de São Paulo, traduzido por Joedson Marcos Silva.
Uma luta pelo direito de ler
Heidegger
Por Michael Marder
Nesta primavera, a Associação dos
Estudantes da London University College proibiu a
reunião de um grupo
chamado Nietzsche Club, formado para discutir as
ideias de filósofos que inspiraram, entre outros, políticos e
líderes de extrema direita do passado, como Benito
Mussolini, um admirador da obra de Nietzsche. O Conselho da
União decidiu que a discussão de tais pensadores e ideias promoveria uma
onda perigosa de fascismo entre os alunos e os impediu de se
reunir publicamente.
Para aqueles da filosofia que como nós se inquietam
com relação à censura ideológica, este incidente parece ser a ponta do iceberg de
uma luta iminente sobre as perspectivas de um sério compromisso acadêmico com
alguns dos mais importantes filósofos dos séculos 19 e 20. Mas, ao contrário
das reais camadas de gelo do Ártico que estão se derretendo num volume
alarmante, o congelamento do pensamento não mostra sinais de diminuição. De
fato, um frio ameaçador está se formado em torno da obra de Martin Heidegger.
Com a publicação dos Volumes 94-96 das
"Obras Completas" de Heidegger contendo os infames "Cadernos
Negros" (ou diários privados, ainda não traduzidos para o Inglês), no
início deste ano, os seus críticos, apontando para a prova irrefutável do antissemitismo
de Heidegger, afirmam agora que a sua filosofia é repleta de ideias totalmente
censuráveis - e isso a tal ponto que a crítica da modernidade desenvolvida
pelo pensador alemão está sendo reinterpretada como uma maneira de
"limpar" o seu antissemitismo.
Como judeu, que sofreu discriminação
antissemita nos últimos anos da União Soviética, estou bem cansado das
manifestações contemporâneas dessa ideologia odiosa. Não obstante, considero
igualmente cansativas as tentativas de usar o rótulo de
"antissemitismo" como instrumento para silenciar a dissidência. Tanto
a oposição ao sionismo como o pensamento inspirado por Heidegger sofrem agora essa
acusação, o que iguala esses diferentes fenômenos de maneira superficial e
irrefletida, sem um mínimo de respeito pelas reais vítimas da opressão étnica
ou religiosa.
Claro, nenhuma das recentes
revelações sobre Heidegger deve ser suprimida ou descartada. Mas também não
devem se transformar em mantras e fórmulas, destinadas a desacreditar um dos
sistemas filosóficos mais originais do século passado. Em causa estão não
apenas os conceitos (como o de "ser-no-mundo") ou metodologias (como
a "ontologia hermenêutica"), mas a maneira sempre nova de pensar que
nos reserva inúmeras possibilidades não sancionadas pela racionalidade técnico-científica dominante, que rege grande parte da filosofia
dentro dos muros da academia. São, de fato, essas possibilidades os verdadeiros
alvos dos detratores de Heidegger, que estão determinados a macular a
totalidade do seu pensamento e laborar com a dupla carga de nazismo e
antissemitismo.
Agora, se os filósofos canônicos
forem colocados na lista negra com base em seus preconceitos e compromissos
políticos, então não haveria muito da esquerda na tradição ocidental. Platão e
Aristóteles estariam fora como defensores da escravidão e do chauvinismo; Santo
Agostinho seria banido por sua intolerância para com os hereges e os
"pagãos"; Hegel seria eliminado por sua admiração incondicional por
Napoleão Bonaparte, em quem viu o "espírito do mundo a cavalo."
Quanto ao próprio Heidegger,
aqueles minimamente versados em seu pensamento devem saber - quer admitam ou
não - que o seu antissemitismo contradiz o espírito e a letra dos seus textos,
independentemente do manto ontológico ou metafísico que ele lança sobre o discurso
antissemita. Talvez o pensador alemão não tenha percebido essa contradição, mas
isso não significa que ela não esteja lá. Deixe-me dar um exemplo.
Em uma construção de frase
deplorável, encontrada nos "Cadernos Negros", Heidegger escreve sobre
a condição de "sem-mundo" do judaísmo e associa o desenraizamento
judaico de um território nacional com a
‘tarefa’ histórico-mundial" de
desarraigar todos os entes do Ser", que, de acordo com Heidegger, o judaísmo
presumivelmente partilha tanto com a modernidade como com o bolchevismo, o
americanismo, o imperialismo britânico, e assim por diante. O filósofo francês
Emmanuel Faye está correto em conectar este conceito de "sem-mundo",
que descreve o estado de um objeto inanimado, como uma pedra, ao curso de 1929 de Heidegger sobre "Os
Conceitos Fundamentais da Metafísica”. Como sem mundo, os judeus veem-se
reduzidos ao nível das coisas - uma técnica clássica de desumanização. Mas a
partir deste argumento válido, Faye dá um salto e tira a ridícula conclusão de
que "a noção heideggeriana de ‘ser-no-mundo’, central em ‘Ser e Tempo’,
pode assumir o significado de um termo discriminatório com intenções
antissemitas". Enquanto o seu primeiro ponto sonda as profundezas do
antissemitismo de Heidegger, o segundo é um truque amador, tentando macular uma
ideia fecunda por meio de mera livre associação.
Bem antes da publicação dos
"Cadernos Negros", metáforas organicistas de Heidegger para a vida
espiritual como o que está enraizada, semelhante a uma planta, no solo nativo
(por exemplo, no "Discurso sobre o Pensamento") podem ser lidas como
negação do talento genuíno e da criatividade para aqueles que não desfrutaram
de uma forte ligação com a "terra natal", incluindo, em primeiro
lugar, o povo judeu. Mas uma tal miopia racista, afinal, não é de modo algum uma
consequência do conteúdo de sua filosofia. Na verdade, pode-se dizer que o modo
judaico de enraizamento foi temporal, e não espacial; antes do projeto sionista
empreender uma mudança neste estado de coisas, os judeus estavam fundados
somente na tradição, e não em um território nacional.
Essa fundação é um anátema para a
condição desenraizada da modernidade, com a qual Heidegger apressadamente
identificou a vida e o pensamento judaicos e que se expressa, precisamente, na
destruição da tradição. Do ponto de vista do autor de "Ser e Tempo",
a natureza temporal do enraizamento judeu deveria ter sido vista como mais
desejável do que laços espaciais com o solo. Afinal de contas, Heidegger não
quer fazer o tempo (finito), mais do que o espaço, fundamental para a
existência humana?
Há, então, uma profunda
desconexão entre o preconceito antissemita de Heidegger e a sua filosofia, que
influenciou uma série de pensadores judeus proeminentes, de Hannah Arendt a
Jacques Derrida, e de Leo Strauss a Emmanuel Levinas. No entanto, cada vez mais,
se é forçado a justificar o próprio ato de ler suas obras por motivos que não sejam
somente a denúncia e a censura. Como minha colega Márcia Cavalcante Schuback
(que traduziu "Ser e Tempo" para o português) e eu escrevemos em
nosso próximo comentário sobre o seminário de Heidegger de 1934-1935, analisando a filosofia política de Hegel:
"‘O caso Heidegger’, ou ‘l'affaire Heidegger’, como dizem os franceses, é
o caso da filosofia diante da perda do seu direito. E quais são as
controvérsias que cercam o nazismo de Heidegger senão sobre o direito do e ao seu
pensamento, para não mencionar o direito de pensar seguindo a sua via, apesar
de, contra, ou com o seu passado?”
Mais amplamente formulada, a
pergunta é sobre quem tem o direito de seguir com a filosofia, de chamar a si
mesma ou a si mesmo de filósofo, e negar esta denominação para os outros. Em
seu livro, "Heidegger: A Introdução do Nazismo na Filosofia", Faye,
ao se referir a Heidegger, coloca muitas vezes a palavra filósofo entre aspas.
A luta atual para a possibilidade de ler certas obras filosóficas é, portanto,
uma luta sobre o próprio sentido da filosofia, com ou sem aspas.
Michael Marder é professor de filosofia
na Universidade do País Basco (UPV-EHU), Vitoria-Gasteiz. Seu livro mais
recente é “Phenomena — Critique —
Logos: The Project of Critical Phenomenology.”
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