Prezado(a) leitor(a),
Algumas vezes, para relaxar, escrevo umas crônicas, poemas e contos. Não tenho nenhuma pretensão de fazer textos literários, apenas uma curiosidade sobre narrativa para brincar com as palavras.
Abaixo, um dos contos de minha autoria. Se você tiver tempo e paciência, aproveite.
OS MÓRBIDOS DA RUA GROW
Pof! O som da fruta caída, rachada, ecoava no quarteirão deserto ao meio dia. Era sagrada a sesta em Província. Raros passantes atreviam-se a encarar o sol escaldante.
Quem arriscava uma saída apressada ouvia nas calçadas apenas o ranger das cordas e os estalos das correntes embalando as redes nas enferrujadas escápulas de ferro. Preguiça, mormaço e sono dominavam o ambiente após o almoço.
No meio da tarde, a cena era outra. Na temporada de jambos, a cidade coloria. As frutas vermelhas, carnudas, com cheiro inebriante, vicejavam nas praças, quintais e sítios da cidade nos meses de julho e agosto.
Robustos e amaçanados, os jambos ruborizavam Província. Os maduros, quando mordidos, pareciam derreter na boca, deixando escorrer o mel nos cantos dos lábios, como se fossem grandes uvas roxas.
Ao redor dos jambeiros formavam-se enormes tapetes avermelhados de flores caídas.
Todas as manhãs e ao cair da tarde as crianças corriam em cambadas pelas ruas na fuzarca de baladeiras, pedradas e pauladas para derrubar os frutos preferidos.
Mas em uma dessas manhãs alegres um outro vermelho tomou conta do mais frondoso jambeiro da cidade. A notícia correu rápido como rastilho de pólvora. E quase toda a cidade acudiu para ver aquele acontecimento.
Do alto do jambeiro-mor, um corpo amarrado pelos pés, com a cabeça decepada, gotejava sangue. O líquido viscoso misturava-se ao tapete de flores esparramado ao redor da árvore.
Província era uma cidade remanescente do ciclo do ouro. O garimpo havia enriquecido várias famílias e abasteceu o tesouro da Igreja, em nome de Santa Maria do Oeste, a festejada padroeira do lugar.
Religiosa, pacífica e próspera, a pequena cidade vivia agora o crescimento do rebanho de gado após a decadência da mineração. Um corpo sem cabeça, pendurado no bosque, era um acontecimento macabro para os viventes de Província.
A polícia foi acionada e as investigações começaram. O corpo seguiu em comoção para a capela central de Santa Maria, enquanto procissões de beatas tomavam conta da cidade.
Durante o dia inteiro os moradores revezavam-se para ver o morto sem cabeça. Toda a cidade queria matar a curiosidade. O velório entrou pela madrugada, sem que ninguém aparecesse para identificar o corpo.
Província não dormiu. Na manhã seguinte, uma chuva fina e gelada cortava a primeira segunda-feira de agosto. Em passeata pela paz, as carpideiras soltavam cantos agudos, com os terços entrelaçados nas mãos, contando minuciosamente os pais nossos e as ave-marias.
Ao passar pela rua Grow, um burburinho tomou conta do cortejo, estranhando a ausência da caminhonete da família Strong na porta de casa. Todos os dias, bem cedo, era ritualística a movimentação na morada dos mais esquisitos habitantes da cidade.
Os pais e filhos, àquela hora, sempre arrumavam as caixas de verdura na caminhonete e partiam para a roça, acompanhados do modorrento cachorro Lontra. Eles viviam do cultivo de beterraba e abóboras, no solo propício da região. Mas àquele dia, as portas fechadas e o silêncio imperavam na soturna casa 7 da rua Grow.
Descendentes de nórdicos, vieram ao Brasil em busca do clima tropical, devido aos problemas respiratórios dos gêmeos Bob e Roms, primogênitos de uma prole de quatro filhos.
A doença pulmonar dos meninos agravou-se na juventude, com os exageros de uma fase punk intensamente vivida nas ruas de Londres, onde moraram uma temporada antes de migrar ao nordeste brasileiro.
Os gêmeos haviam experimentado várias substâncias alucinógenas que deixaram seqüelas na maturidade. E os médicos haviam recomendado a agricultura como espécie de terapia ocupacional a toda a família, herdeira das perturbações dos rapazes.
Os Strong moravam na rua Grow havia três décadas e cultivavam hábitos estranhos. Macambúzios e ensimesmados, quase não se relacionavam com ninguém. Mantinham a rotina da casa para a roça e nada mais além dos poucos afazeres domésticos.
À noite, sentavam-se à porta com o cachorro Lontra, companheiro de todas as horas, inclusive no trabalho da roça. A casa dos gringos, como eram conhecidos, tinha um cheiro característico de mofo e vinagre, facilmente perceptível quando abriam a porta à noite para tomar fresca na calçada.
As cadeiras enfileiradas, Lontra esfregando-se entre os pés dos donos e o silêncio raramente entrecortado por poucos ruídos eram a tradicional visão noturna de quem passava pela rua Grow.
Apenas a bengala do velho Strong era acionada para indicar o tom dos resmungos emitidos esporadicamente, entre uma e outra troca de monossílabos e das baforadas de fumo forte do velho.
Cabelos médios, barba embranquecida, o pai dos gêmeos tinha um olhar profundo de arrependimento e tristeza. A esposa, magra e mal cuidada, roupas por coser, sentava-se ao lado e vez por outra batia o leque nos mosquitos persistentes sobre o pelo sujo de Lontra.
Na altura da rua Grow, o cortejo das beatas foi bruscamente interrompido por um comboio de viaturas da polícia. Aqueles homens de preto, óculos espelhados, as cabeças cobertas por boinas, armados até os dentes, silenciaram os cantos fúnebres e anunciaram a identificação do corpo sem cabeça: era Bob, o loiro dos Strong.
A pista para descobrir o corpo foi dada pela vendedora de uma das lojas de calçados da cidade. Acompanhando o velório na madrugada, ela percebeu os resquícios de uma tatuagem localizada próxima ao tornozelo do defunto, vista há meses quando Bob foi comprar umas botas para o trabalho na roça.
Foi difícil juntar as letras para formar as palavras, porque os tornozelos estavam deformados em virtude das cordas que seguraram o corpo de cabeça para baixo. Com a ajuda de um professor de inglês, os peritos decifraram a expressão. Estava escrito “never more.”
Os policiais haviam cercado o quarteirão e começaram a varredura em cada milímetro antes de entrar na casa 7. Ao arrombarem a porta, depararam-se com a casa vazia, sem qualquer vestígio dos esquisitos moradores.
Encontraram somente umas abóboras e beterrabas podres, as cadeiras enfileiradas e poucos móveis maltratados pelo tempo. Um dos policiais, no entanto, percebeu o cheiro e resquícios de terra úmida espalhados pelo corredor, na cozinha e no quarto.
Ao pisar no canto do cômodo, sentiu o assoalho ceder e descobriu, por baixo do tapete sujo, um corte retangular na madeira, com dois furos laterais. Sacou da faca, enfiou na fresta, puxou uma das tábuas e sentiu uma brisa refrigerada de ar condicionado na cara.
Estava descoberto o túnel que ligava a casa dos Strong ao principal banco da cidade. Naquele exato momento, a multidão curiosa na rua Grow somava-se ao desespero do gerente que acabara de chegar para abrir a agência. O maior assalto bancário de Província estava consumado.
As jóias das carolas, o tesouro da igreja, o dinheiro dos fazendeiros... tudo havia evaporado dos cofres.
Imediatamente uma parte do comboio deslocou-se para a roça dos Strong. Estava um deserto. No alpendre, ao fundo, a cabeça de Bob amarrada em uma viga ainda soltava as últimas gotas de sangue sobre um velho baú de madeira.
E dentro do baú, uma carta manuscrita dizia assim:
“Quando o assalto for descoberto, estaremos longe demais e inalcançáveis. Durante uma década planejamos essa façanha. Tudo foi meticulosamente pensado.
A cada dia cavávamos um trecho do túnel, levando os entulhos nas caixas de verdura para a roça, na madrugada. Foi uma década de trabalho árduo.
Misturávamos a terra e triturávamos toda a parte de concreto e pedra. Roms usou de suas habilidades técnicas para desativar os alarmes e descobrir os segredos dos cofres.
Sacrificamos um dos nossos próprios familiares para causar uma comoção na cidade e desviar as atenções da população para o bosque.
Há dez anos nós sabíamos que cortaríamos na própria carne, sacrificando uma de nossas cabeças. A perda necessária.
Na antevéspera do assalto, fizemos o sorteio e Bob foi escolhido. Não vacilamos. A cabeça cortada foi uma estratégia para dificultar a identificação do corpo, bem como os tornozelos amarrados para confundir a tatuagem.
Pensamos em tudo. As nossas três décadas de vida recolhida, insignificante, estão agora recompensadas.
Adeus!