A METALINGUAGEM DA ARTE CONTEMPORÂNEA EM ZECA BALEIRO
por Samuel Marinho
O autor é contador e servidor público federal. Nesse texto, conta estórias com estilo sobre Baleiro e serve o blogue com uma ótima leitura. Aprecie sem moderação.
Nas entrevistas que antecederam o lançamento do seu mais recente trabalho, O Coração do Homem-Bomba, Zeca Baleiro costumava resumir: “É apenas mais um disco da boa e velha música popular brasileira. Espero que isso baste!”. Mero despiste do poeta-publicitário. É, na verdade, o disco mais pretensioso e conceitual (com o perdão da palavra) de um dos artistas que se propôs a reinventar a música popular brasileira na última década.
Mais que uma reverência à Tropicália, abaixo o rótulo que lhe insistiram de neo-tropicalista no início da carreira, Zeca Baleiro trilha caminhos muito próprios na chamada linha evolutiva do cancioneiro popular.
É uma (des)continuação ousada que propõe fim à dicotomia brega x chique e que festeja a um só tempo a maldição e a realeza da música popular brasileira, de Sérgio Sampaio a Roberto Carlos: uma pretensa intenção de unificar a nação.
Na poética, nota-se uma veia que representa uma brasilidade idealista, do jeito que deveria ser: é o baleiro que distribui balas, mas sem esquecer de dispará-las.
Para o desastre da crítica musical, essa evolução que ainda não encontrou denominação própria, se reafirma agora em seu trabalho mais (in)tenso, onde a metáfora das balas se maximiza na figura do homem-bomba.
O volume 1 é a festa, a explosão de diversidade, da alma multicolor e miscigenada a qualquer custo do brasileiro, tudo ao sabor do homem contemporâneo que é aquele nascido em Arari.
O volume 2 é a ressaca, ou melhor, a tempestade de uma tempo suicida, o olhar sobre o terror de uma era muito estranha, mas como falaria o próprio Zeca, não sem ironia.
A aparente despretensão do Baleiro se mostra logo na simplória vinheta que abre o volume 1: “O coração do homem-bomba faz tum tum / até o dia em que ele fizer bum”.
Estamos mais uma vez diante de uma das marcas da sua poética musical: a metalinguagem da arte contemporânea, explorada desde os primórdios de Por Onde Andara Stephen Fry? (1997), tão bem intensificada em Pet Shop Mundo Cão (2003), que rendeu temas de músicas inteiras como as emocionantes “Muzak”, “Telegrama” e “Mundo dos Negócios” e cuja síntese se extrai dos versos de “Fiz esta Canção” (2003): “Pra que que eu vou cantar / se você não vai escutar / a voz do coração deste compositor popular?”.
O problema da obra de Zeca parece sintetizar o anseio do artista de nossa era: em meio a tantas possibilidades midiáticas, cantar o quê, onde e para quem. O clichê de que o artista tem que ir aonde o povo está, ao menos aqui parece ter sido contrariado.
É um compositor, auto-intitulado popular, inquieto, sempre disposto a transpor as barreiras do público segmentado que a armadilha da comunicação de massas lhe impôs, e que a certa altura se denominou de forma bela e mórbida como a “um artista de balas perdidas que nunca encontrou seu público-alvo”.
O Coração do Homem-Bomba é essa esperança mais uma vez assumidamente fracassada de atingir as grandes multidões, o que justifica o mote de criação da saga que dá nome ao trabalho, algo parecido com o que Baleiro fizera no seu primeiro disco.
O músico-poeta, embora negue a forma conceitual, tem sua trama sintetizada a partir do questionamento presente no conto-release disponível em seu sítio “A saga do homem-bomba”.
O que faria um homem-bomba que, fracassado em sua razão existencial, envelhecesse e não pudesse cumprir sua vocação? Aqui a leitura é imediata: o que faria um compositor popular que tem a vocação para cair na boca do povo, se não conseguisse nunca atingir ao seu público-alvo, “explodir”? É ele, Zeca, o próprio homem-bomba, o próprio Stephen Fry. Esse o leitmotiv de toda a discografia do Baleiro, obviamente a ser discutida num futuro póstumo.
Em o Coração do Homem-Bomba encontramos o artista popular pronto pra mais uma vez alargar o alcance de sua música, para além do público universitário que sempre lota os seus shows frenéticos em São Paulo.
Por isso ele declara, cheio de auto-deboche, a um certo público inatingível: “Vou fazer canções de amor pra vender... Você não liga pra mim, mas eu ligo...:”. O que parece uma canção de amor boba aos moldes tribalistas de composição, acaba incorporando o modo genial de dizer o mundo nas entrelinhas cheias de intenções, resquício de uma música popular dita de resistência de épocas duras.
Mas livre de qualquer complexo de Caetano Veloso, as referências do compositor maranhense vão do escracho da Bossa Nova misturado ao auto-deboche d´Os Mutantes e Pato Fu, como em “Pastiche” e “Samba de um Janota Só”, a momentos solenes que exaltam personagens obscuros do cancioneiro popular como Odair José e Geraldo Vandré.
“Toca Raul”, uma das pérolas do cancioneiro popular da década atual, é bem figurativa da forma sutilíssima de expressão agora adotada pelo compositor.
É uma canção que tem mais a dizer no contexto, do que na própria letra: “Mal eu subo no palco, um mala um maluco já grita de lá: - Toca Raul”. Inserida após uma vinheta aparentemente sem nexo (Aí Beethoven! Será que ninguém me ouve?), que funciona na verdade como prelúdio, a música pode ser lida como um fracasso assumido da veia autoral de um compositor que se quer verdadeiramente popular.
Ciente dessa impossibilidade, só lhe resta reverenciar àquele que por último, carregado de idéias e ideologias, ao lado de Cazuza e Renato Russo, teve sua música alçada a índices indiscutíveis de popularidade. São reflexos do tempo fragmentado, sólido que se desmancha no ar, que angustia o artista contemporâneo e que já não comporta as mesmas concepções de vilão, herói ou gênio.
Ainda assim, “O Coração do Homem Bomba” não poderia se encerrar apenas em inflexões melancólicas e/ou devaneios existenciais de um mundo que nem sequer se dá conta disso. Não! Definitivamente, paremos por aqui.
“Tome uma atitude sua besta, seja uma besta com atitude, pode ser uma atitude besta, mas que seja uma atitude” são os versos de auto-ajuda que encerram o intervalo de propagandas recheado de vinhetas geniais do poeta-publicitário. Como fã inveterado que sou, só tenho a agradecer: Obrigado Zeca Baleiro, pela besta que você é.
Samuel Carvalho Marinho, Belém-PA, outubro de 2009