Samuel Marinho*
Não faz muito tempo que eu não conseguia digerir uma canção sequer da carreira solo de Nando Reis.
Impulsionado por um certo preconceito auditivo (julgava o trabalho vocal do compositor um tanto sofrível) passei muito tempo privado da emoção latejante de suas canções. O mesmo preconceito que muitos têm até hoje, por exemplo, com a voz de Chico Buarque.
Foi quando, num desses dias de chuva, ouvi com atenção “Relicário”, registro ao vivo na própria voz do Nando Reis pela grife MTV. Nesse momento surgiu na minha cabeça uma profusão de imagens e sentidos magníficos, para o meu universo totalmente novos, que aquele compositor fez despertar.
Uma letra que comparo às mesmas imagens estranhas e intensas de “Chão de Giz” de Zé Ramalho e às coisas mais enigmáticas e espiritualistas que Raul Seixas deixou. Em vários momentos a letra da canção faz revelações iluminadas: “O mundo está ao contrário e ninguém reparou. (...) Eu sou a chuva pra você secar (...) O horizonte anuncia com seu vitral que eu trocaria a eternidade por essa noite”.
Nando Reis até então pra mim, dado o meu preconceito boçal, era apenas um ex-integrante do Titãs e emergente compositor em carreira solo que havia feito umas músicas mais ou menos otimistas e outras que eu julgava confusas demais para a voz de Cássia Eller, a exemplo da própria “Relicário” e “Segundo Sol”.
Como alguém pode viver tanto tempo sob a resistência infeliz de sua mente preconceituosa? Foi o que me perguntei ao mergulhar profundamente no universo do compositor e descobrir que todas as suas canções surgem de experiências muito humanas.
São signos que, em contraponto aos nossos paraísos artificiais, procuram o elo perdido com o natural: o sol, a lua, o mar, o horizonte, mares, ilhas, rios, penínsulas e oceanos.
Mas o traço marcante de Nando Reis não é o índio da fase purista do nosso romantismo. A índia aqui entra como um elemento perturbador a questionar uma beleza sufocada pela catequização portuguesa: “O que está acontecendo? Eu estava em paz quando você chegou.. Sua cartilha tem o ´A´ de que cor?(...) O que você está fazendo? Milhões de vasos sem nenhuma flor.”
E nesse mesmo sentido de experiências humanas intensas surgem canções para pais, mães, filhos e amigos, sobre o sol, a lua, o dia e a noite.
É assim com a obra-prima “Espatódea”, composta após o nascimento de sua filha Zoé. A música curiosamente leva o nome científico de uma flor por se assemelhar com o rosto da filha de Nando Reis, na descrição do compositor “cheio de sardas”.
Pura emoção de uma música que quer somente ser música e, assim como o som de Jorge Vercilo, por exemplo, se mostra desvinculada das mesmas pretensões da ala dita mais cabeça e tardiamente engajada da “nova MPB”.
Sobre outro aspecto, os signos urbanos da geração coca-cola também se fazem presentes na poética de Nando. É claro que com outra conotação, e a mais dialética possível: elevadores, apartamentos e alusões a ícones de consumo ganham luz e conforto poético no cotidiano retratado com excelência no vôo solo do ex-titã. Algo, se não inusitado e de rara beleza, pelo menos executado com extrema competência.
De todas as canções emocionadas de Nando Reis, por fim, “All Star” é uma que merece o devido destaque. Uma música que tem tudo para ser criticada pelos acadêmicos de sociologia como culto a um símbolo de consumo contemporâneo... aff! , é a que escolho para indicar àqueles que assim como eu um dia não deram a devida atenção ao seu trabalho solo.
É uma canção simples sobre amizade. E a construção da arte nesse caso vem da convivência entre Nando Reis e Cássia Eller, duas estrelas da música brasileira. Passagens da letra dão pista: “O som que ouço são as gírias do seu vocabulário (...) O tom que eu canto as minhas músicas pra tua voz parece exato”.
A beleza e sutilidade da expressão de Nando Reis nessa música é um dos momentos mais emocionantes da recente safra de canções brasileiras.
Tudo nela converge para o sublime: a letra singela que cresce numa profusão de elementos todos bem arranjados, a melodia comovente, a seqüência de imagens de um cotidiano que mistura apartamentos e laranjeiras, a própria voz de Nando que empresta a alma na medida certa pro refrão arrebatador: “Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras satisfeito sorri quando chego ali e entro no elevador aperto 12 que é o seu andar, não vejo a hora de te encontrar e continuar aquela conversa que não terminamos ontem, ficou pra hoje.”
Por essas e outras canções, não posso viver só de saudades.
O presente está aqui e é a música de Nando Reis.
* Samuel Marinho é contador, servidor público federal e colaborador deste blogue.